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CAPÍTULO 3 - Acreditando

Atualizado: 28 de set.

— Kazemiya.

— Espere um segundo... Deixe comigo. Eu cuido disso.

Ainda olhando para a tela do smartphone, Kazemiya teimosamente se recusava a reconhecer uma certa verdade.

— Mas isso é...

— Não diga isso.

— Você definitivamente está perdida, né?

— Eu disse para não dizer isso!

Depois de reunir suprimentos para a fuga, incluindo uma muda de roupa, e terminar uma refeição, nos mudamos para a área próxima a um restaurante familiar 24 horas. Era um pouco distante, então, quando chegamos, a noite já havia caído.

Como a viagem nos deixou exaustos, decidimos parar em uma fonte termal para recarregar as energias antes de irmos ao restaurante. Kazemiya se encarregou de nos guiar até lá.

— Tenho contado muito com você, Narumi. Deixe eu cuidar disso, pelo menos. Você deve estar exausto.

Deixei que suas palavras me convencessem a confiar nela para nos guiar, mas lá estávamos nós, vagando em círculos por ruas parecidas, sem conseguir encontrar o lugar.

— Bem, sim. Esta área é um pouco complicada de andar sem conhecer.

— Obrigada pelo consolo.

— Estou falando sério. Quer que eu ajude você a procurar?

— Me dê só mais um pouquinho de tempo.

Kazemiya segurou seu smartphone com mais força e voltou a se concentrar intensamente na tela.

— Eu mesma encontrei esse lugar e até fiz a reserva. Quero levar isso adiante sozinha.

Agora que penso nisso, ela não tem permissão para ter um emprego de meio período. Uma viagem como essa deve ter sido um exagero.

Para alguém como ela, até mesmo sair e viajar com uma amiga assim provavelmente era uma experiência totalmente nova. Tudo devia parecer novo e emocionante. É por isso que ela estava determinada a ter sucesso sozinha.

Acho que é um dos meus maus hábitos.

Quando observo Kazemiya, sempre sinto a necessidade de ajudá-la, de apoiá-la. Mas talvez isso nem sempre seja bom para ela. Até mesmo toda essa situação de fuga é prova disso.

Da perspectiva de alguém de fora, pode parecer trivial ou tolo. Eles podem ver isso como uma manobra sem sentido e, apesar disso, Kazemiya estava tentando seguir em frente. 

Mesmo que estivesse se debatendo, mesmo que seu progresso fosse pequeno ou equivocado, ela se recusava a parar. Observá-la lutando para dar passos em direção à algo, isso a fazia brilhar aos meus olhos de forma insuportável.

— Tudo bem. Vou deixar isso com você.

— Entendido.

As estradas na área eram confusas e as obras nas proximidades não facilitavam as coisas, mas graças aos esforços dela, finalmente chegamos à fonte termal.

— Bom trabalho.

— Valeu.

Ela deve ter sentido que eu a estava tratando como uma criança, pois fez um pequeno beicinho, com os lábios protuberantes. Foi tão cativante que quase ri, embora soubesse que dizer isso só a irritaria.

Tendo deixado nossa bagagem grande em um armário pago nas proximidades, guardamos nossos pertences restantes lá e pagamos por dois ingressos na recepção antes de entrar. Esta fonte termal tinha uma fonte natural como sua principal atração, mas também oferecia opções de refeições, espaços de relaxamento e cadeiras reclináveis para descansar.

Isso é muito além de apenas desfrutar dos banhos…

— Primeiro, o banho. Vamos nos encontrar na área de relaxamento depois.

— Entendi.

Com isso, Kazemiya se dirigiu ao banho feminino, mas parou abruptamente.

— O que há de errado?

— Eles têm banhos privados aqui?

— Existem espaços privados para mulheres, mas... você queria tomar banho sozinha?

— Não, não é isso.

Olhando diretamente nos meus olhos, ela deu um sorriso malicioso, como uma criança brincalhona aprontando alguma travessura.

— Se tivesse banhos mistos, eu pensava em entrar com você. Eu odiaria com outros caras, mas se for você, Narumi, eu não me importaria.

— O quê?! Não seja ridícula! O que você está dizendo?

— Haha! Isso é o troco por me tratar como uma criança há pouco. Até mais.

Com isso, ela saiu pulando alegremente em direção ao banheiro feminino.

— Sério... Não faz isso comigo, Kazemiya. Isso faz mal pro meu coração.

Eu a observei desaparecer antes de respirar fundo para me acalmar e seguir para o banheiro masculino. Depois de me despir e trancar minhas roupas, entrei no banho. Enquanto me lavava e jogava água sobre mim, pude sentir não apenas a sujeira, mas também o cansaço lentamente sendo lavado.

— Haaah…  — mergulhando até os ombros na fonte termal, soltei um suspiro.

Quando foi a última vez que visitei uma fonte termal?

Nunca me importei muito com elas, mas isso não era nada mau. Sentado sozinho na água quente, meus pensamentos começaram a girar.

— Eu realmente fiz algo imprudente.

Pegar Kazemiya e fugir assim... o que eu estava pensando?

Tenho certeza de que meu celular, com as notificações silenciadas, está cheio de mensagens dos meus pais. Mensagens que estou evitando deliberadamente. Eu estou fugindo de confrontar a realidade.

Mesmo alguém como eu, levando Kazemiya embora assim, não poderia realmente fazer nada por ela. Eu sabia disso. Eu sabia e mesmo assim… 

Não podia simplesmente deixar Kazemiya ali, parada na chuva.

Suas bochechas estavam tão molhadas pela chuva,ou talvez lágrimas, que eu nem conseguia dizer qual era.

— E agora estou apenas vagando por aí assim. Que patético... sério.

Sem o consentimento dos pais, ficar em um hotel poderia fazer com que fôssemos pegos pelas autoridades.

Se fosse só eu, eu não me importaria, mas se Kazemiya fosse pega, as consequências para ela seriam muito piores. É por isso que não pude seguir esse caminho e, em vez disso, acabamos nessa situação incompleta, passando a noite em um restaurante familiar.

Eu queria ajudá-la de verdade, estar realmente ao lado dela. Queria ser alguém em quem ela pudesse confiar. Ela diz que sou adulto, mas isso está longe de ser verdade. Sou apenas uma criança.

Uma criança impotente e indefesa.

Achei que estivesse me acostumado com essa sensação de impotência. Quando meu pai ainda estava vivo, quando eu dava o meu melhor naquela época, sentia isso todos os dias.

Mas eu não tinha me acostumado com isso de forma alguma. Sentir essa impotência de saber que não tenho força suficiente para realmente ajudar Kazemiya me deixou mais irritado e frustrado do que jamais imaginei ser possível.

— Kazemiya... será que ela está bem?

Apesar da minha própria impotência, eu a tinha levado embora. Não conseguia tirar da cabeça a ideia de que estava apenas arrastando-a sem sentido, esgotando-a sem motivo algum.

O que Kazemiya poderia estar pensando agora? Que tipo de sentimentos ela está guardando?

Mesmo que seja algo passageiro, que inevitavelmente desaparecerá algum dia.

Pelo menos, por enquanto, espero que ela esteja tendo um bom sonho. 

— Haaah… Isso é tão relaxante.

Quando foi a última vez que mergulhei em uma fonte termal? Acho que fui com minha irmã mais velha e minha mãe quando era pequena, mas provavelmente foi a última vez desde então.

Enquanto estou sentada sozinha na água, meus pensamentos começam a girar na minha cabeça.

Se houvesse um banho misto, eu teria gostado de entrar com Narumi.

— Uwaaaaaahhhhhhh!

O que estou dizendo!? Era para ser apenas uma pequena vingança, mas acabei dizendo algo completamente ultrajante! Eu sou algum tipo de pervertida!? E Narumi… Eu devo tê-lo deixado muito desconfortável…

— Sim, ele parecia desconfortável.

É claro que sim! Qualquer cara se sentiria constrangido se uma garota da sua idade dissesse algo assim para ele…

— Eu não teria me importado, no entanto…

Se fosse qualquer outra pessoa, eu odiaria, mas se for o Narumi, não me importo. Era isso que eu realmente sentia.

— Seria bom se o Narumi sentisse o mesmo...

Mas ele parecia preocupado. Eu o fiz sentir assim.


ree

— Haaah... Sou tão idiota... Fugir de casa sem pensar... Depender dele para dinheiro... Me perder...

Quanto mais penso nisso, mais eu sinto que não tenho nenhuma qualidade redentora.

— Estou apenas causando muitos problemas para Narumi... mesmo sendo amigos... Estou sendo um fardo tão grande que ele deve estar ficando cansado de mim...

Amigos... Essa palavra parece estranha. Não parece mais se encaixar. Narumi Kouta se tornou muito mais do que apenas um amigo para mim.

— Será que minha irmã teria sido uma companhia melhor? Talvez seja por isso que sempre acabo me comparando a ela.

Como Narumi significa tanto para mim, o rosto da minha irmã de repente vem à minha mente. Se fosse ela, não teria se perdido. Não teria precisado depender de Narumi para ter dinheiro. 

Nem teria fugido de casa, para começar…

— Se fosse minha irmã, tenho certeza que...

Embora as águas termais tivessem relaxado meu corpo, as nuvens que pairavam sobre meu coração se recusavam a se dissipar.

Fui eu quem arrastou o Narumi para isso. Porque sou fraca. Porque sou impotente. Mas, pelo menos, mesmo que fosse só um pouco, esperava que essa escapada fosse agradável para o Narumi também…

Não pude deixar de desejar isso.

Depois de sair do banho, fui para a área de relaxamento onde combinamos de nos encontrar. Narumi ainda não estava lá, mas meu celular tinha uma mensagem dele.

NARUMI: Fui fazer compras.

Não consegui relaxar sozinha em uma espreguiçadeira, então me sentei em um sofá para duas pessoas. O local estava silencioso, provavelmente por causa da hora do dia. Sem nada melhor para fazer, abri um aplicativo de vídeo no meu celular por hábito.

— Ah...

A seção de recomendações mostrava o novo videoclipe de Kuon, “Snow Wings”. Ele já havia ultrapassado 100 milhões de visualizações em um dia após o lançamento. Ela é alguém de um mundo totalmente diferente e tão distante de mim que até mesmo comparar a gente parece ridículo.

— Incrível…

O videoclipe, que aparentemente foi roteirizado pela minha irmã, recebeu um número impressionante de curtidas em todo o mundo. Em um mar de comentários astronômicos, encontrar um único comentário negativo seria um desafio. O mais impressionante de tudo era o canto dela. Era tão poderoso que tocava o coração só de ouvir. Não importava quantas vezes repetisse, a música sempre parecia nova, como se tocasse diretamente minha alma e a prendesse. 

— Eu realmente amo as músicas da minha irmã.

Eu nem conseguia contar quantas vezes tinha reproduzido esse videoclipe. O mesmo valia para as outras músicas dela. Começando pela faixa de estreia, “Wings of an Angel”, tinha Sugar Sheep, Marshmallow Declaration, Bone World, Sakura Minus Red... e muitas outras. Eu ouvi todas as músicas dela, mesmo as anteriores à estreia como Kuon. 

Se Narumi conhecesse minha irmã...

Esse pensamento passou pela minha cabeça. Eu não queria pensar nisso, mas não conseguia me controlar. Narumi nunca conheceu minha irmã. Talvez ele a considere alguém distante, em outro mundo. Mas se minha irmã aparecesse na frente dele... 

— Se ele me comparasse a ela...

Eu não teria chance alguma. Narumi definitivamente... 

— O que foi isso?

— Uaeuehh!? Ei, assim você me assusta.

Eu me virei e vi Narumi parado ali, recém-saído do banho. Ele não estava usando o roupão do local, mas uma camisa casual, com o cabelo ainda um pouco úmido e a pele levemente corada.

Tem algo inegavelmente charmoso nisso… 

— Tem alguma coisa no meu rosto? Que estranho. Acabei de verificar no espelho...

— Não, nada! Eu não estava olhando nem nada...

— Tudo bem, então. Quer um desses?

Narumi me entregou uma garrafa de café com leite que ele deve ter comprado na loja. Ao contrário das embalagens de papel das lojas de conveniência, essa era uma garrafa de vidro, como era de se esperar de uma instalação termal. 

— Sim. Obrigada...

Aceitei, tentando esconder meu coração acelerado, e rapidamente engoli tudo. O sabor frio e doce de alguma forma ajudou a me acalmar. 

Enquanto eu bebia, Narumi sentou-se ao meu lado, tomando seu próprio café com leite. 

— Assistindo alguma coisa... Ah, Snow Wings, hein?

— Ah, sim. Eu estava assistindo o da minha irmã…

Ele viu. Eu deveria ter desligado meu celular. Eu não queria que ele assistisse, não queria que ele ouvisse as músicas da minha irmã. Minha irmã é alguém incrível, muito além de mim. 

— É incrível, não é? Cem milhões de visualizações em um dia.

— Você já viu antes?

— Sim. Como ela é sua irmã mais velha, eu dei uma olhada quando foi lançado.

Minha irmã mais velha…

Essas palavras soaram estranhamente reconfortantes. Normalmente, as pessoas se referiam a mim como “a irmã mais nova de Kuon”, mas Narumi disse “A irmã mais velha da Kohaku”. Essa diferença acalmou meu coração. 

— Essa música é tão impactante. Tanto o visual quanto o canto, ela toca seu coração.

— Sim... Minha irmã é realmente incrível.

Sentamos ali, assistindo ao videoclipe juntos em silêncio. 

— Mas ela costumava ser péssima cantando.

As palavras escaparam antes que eu percebesse, trazendo de volta velhas lembranças. 

— Péssima? Você está falando do canto dela?

— Sim. Ela era terrível. Praticamente um barulho.

Os olhos de Narumi arregalaram-se de surpresa. Claro que ele ficaria chocado. Qualquer pessoa que conhecesse Kuon nunca acreditaria nisso. Alguns poderiam até pensar que eu estava com inveja dela. 

— Mas é verdade. Naquela época, eu cantava melhor do que ela. Minha irmã era boa em tudo quando criança, mas cantar era seu único ponto fraco. Lembro-me de ficar muito surpresa.

— Então, ela já gostava de cantar naquela época, hein?

— Sim, ela parecia adorar... mesmo que minha mãe e todos os adultos ao nosso redor dissessem para ela desistir porque era muito ruim, mas eu sempre adorei ouvi-la cantar.

— Mesmo que ela fosse ruim nisso?

— Ela era péssima nisso. É verdade. Só eu, minha mãe e alguns adultos daquela época sabemos o quanto ela era ruim. Só para você saber, não é como se eu estivesse feliz por minha irmã perfeita ter uma falha ou algo assim. Eu realmente amava o canto dela.

— Eu entendo, mas estou curioso… por quê?

— Porque ela parecia estar se divertindo muito.

A resposta veio facilmente, sem precisar vasculhar minhas memórias. Estava lá, tão natural quanto poderia ser. 

— Minha irmã sempre foi capaz de fazer qualquer coisa, mas nunca parecia se divertir. As coisas que eu invejava nela não pareciam ser coisas que ela realmente amava fazer. Mas cantar era diferente. Ela parecia tão feliz quando cantava. Mesmo que seu ritmo estivesse completamente errado e seu tom fosse um desastre, ela parecia estar se divertindo muito, e esse sentimento transparecia em suas canções. Enquanto ouvia, não conseguia deixar de me sentir feliz também... Eu sempre esperava ansiosamente para ouvir minha irmã cantar.

Essas são memórias preciosas para mim, mas elas fazem meu peito doer tanto que tento não pensar nelas. Ainda assim, com Narumi, sinto que posso compartilhá-las. Posso falar sobre elas sem manchá-las, com o coração leve. 

— Minha irmã é incrível. Ela lia livros, pedia conselhos a adultos e praticava todos os dias. Ela se esforçava muito, repetidamente. Mesmo quando não via resultados, mesmo quando as pessoas diziam para ela desistir, ela simplesmente continuava. Eu a apoiei durante todo esse tempo. Claro, às vezes eu sentia inveja. Eu também tinha dúvidas. Por que ela continuava fazendo algo para qual não era adequada? Ela poderia fazer qualquer outra coisa, então por que cantar? Mas... no final, eu sempre a incentivei. Eu adorava suas músicas e queria que ela fizesse o que amava. Eu queria ver seu sorriso, não aquela expressão entediada em seu rosto. Então, quando seu trabalho árduo finalmente valeu a pena, fiquei muito feliz.

Minha irmã é um gênio. A maioria das coisas vem facilmente para ela, mas cantar era diferente. 

— Posso até dizer com orgulho que fui a primeira fã da Kuon.

Eu sei quanto esforço ela dedicou a isso. 

— Pensando bem, minha irmã é realmente incrível. Ela não é nada parecida comigo.”

— É, ela é incrível.

Meu peito aperta. Os olhos de Narumi estão fixos no videoclipe que está passando no meu celular. Saber que o olhar dele está voltado para a música da minha irmã me deixa com uma ansiedade insuportável. 

— Ei, Narumi... você já sentiu vontade de conhecer minha irmã?

O que estou perguntando a ele? Eu nem quero perguntar isso, então por quê? 

— Na verdade, não.

— Por que não? Quero dizer, ela é uma pessoa incrível, certo? Ela é famosa e tudo mais.

— Não é que eu não tenha nenhum interesse em pessoas famosas, mas eu não faria um esforço especial para conhecê-la.

— Se eu pedisse a ela, ela poderia até cantar uma música para você. Você acabou de dizer que era incrível, não foi? O canto dela… você poderia ouvir ao vivo. Músicas que normalmente exigem ingressos para serem ouvidas ao vivo. Ela poderia até autografar algo para você ou vocês poderiam trocar informações de contato...

— Se eu tivesse tempo para fazer tudo isso, preferiria passar com você — Narumi respondeu instantaneamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo — Sua irmã é incrível, sem dúvida. Eu entendo o quanto ela se esforça.

O MV ainda estava tocando na tela do meu celular, mas os olhos de Narumi... seu olhar havia se voltado inteiramente para mim. 

— Mas eu gosto de você, Kazemiya.

— Você... gosta de mim?

— Eu gosto de você. Prefiro ouvir a música de Kohaku Kazemiya do que a de Kuon Kazemiya. Prefiro receber um selo de flor de você do que um autógrafo da sua irmã. E se eu tivesse tempo para trocar informações de contato com Kuon, preferiria gastá-lo conversando sobre nada com você.

Eu não conseguia responder. Minha boca não funcionava. Eu estava feliz. Tão feliz. Tão feliz que isso me fez odiar a mim mesma. 

— Desculpe... Desculpe. Eu fiz algo injusto. No fundo, acho que esperava que você dissesse algo assim. Em algum lugar do meu coração, eu simplesmente...

— Eu atendi às suas expectativas?

— Cale a boca, idiota... Você as superou. Você sempre... sempre...

Eu sou injusta. Eu só causei problemas. Não consigo fazer nada. Nada. Absolutamente nada. Eu só fico recebendo. Eu me odeio por isso, por ser alguém que só recebe.

— Agora que penso nisso, nunca te ouvi cantar, Kazemiya. Gostaria de ouvir.

— De jeito nenhum. Sou definitivamente pior do que minha irmã.

— Eu não disse? Quero ouvir você cantar, Kazemiya.

— Então, você não está negando que eu sou ruim?

— Se você comparar as pessoas com sua irmã, a maioria da humanidade canta mal, inclusive eu.

Gosto muito disso no Narumi. Ele não conta mentiras desajeitadas como “você canta melhor que sua irmã”. É divertido estar com ele, é fácil conversar com ele e, ainda assim…

Às vezes... não, muitas vezes, ele faz meu coração acelerar. Estou me apaixonando cada vez mais por ele. Me apaixonando por ele… Estou começando a sair dos limites de apenas sermos amigos. Esse meu sentimento... esse sentimento é... 

— Você vai ao karaokê, Narumi?

— Às vezes. Principalmente quando estou com Natsuki. Mas quando vamos, geralmente eu só escuto. Aquele cara é incrivelmente bom, especialmente com músicas-tema de seus programas favoritos.

— Huh. Isso é surpreendente... embora seja fácil de imaginar.

— E você, Kazemiya? Você vai ao karaokê?

— Sim, vou. Gosto de cantar, embora não seja nem de longe tão boa quanto minha irmã. Adoro as músicas dela. Sempre que ela lança uma nova, eu ouço e pratico cantá-la.

— Agora eu realmente quero ouvir você cantar. Vamos encontrar um tempo para ir ao karaokê juntos.

— Então... você cantaria comigo? A música tema daquele filme que assistimos recentemente... é um dueto, certo?

Talvez seja porque me sinto aliviada, mas de repente... estou com muito sono. 

— Claro. Vamos fazer uma maratona de duetos e cantar todas as músicas que encontrarmos.

— Parece ótimo... Sinceramente... tenho muitas músicas que quero cantar...

Ah. Não posso. Não devo dormir aqui... mas talvez só um pouquinho... porque agora... 

— Quero ficar com você, Narumi... mais...

Porque agora sinto que poderia ter o sonho mais feliz.

☆ 

Sentada ao meu lado, Kazemiya já havia adormecido, sua respiração suave e constante. 

Bem, nós começamos cedo esta manhã.

Além disso, com toda a viagem que fizemos hoje, não é surpresa que ela esteja exausta. Adormecer assim era inevitável. O ideal seria deixá-la descansar em uma cama adequada, mas não consegui fazer isso e a culpa é minha.

Talvez este seja meu castigo por isso. 

— Hm...

Ainda adormecida, Kazemiya inconscientemente se inclinou contra mim como se fosse a coisa mais natural do mundo. Como planejávamos ir ao restaurante da família mais tarde, ela não estava usando o pijama do local, mas sim a camisa que havia comprado hoje cedo, assim como eu. Era uma roupa casual, quase casual demais, tornando difícil saber para onde olhar. E então havia o fato de que tínhamos acabado de sair da fonte termal. Um calor suave irradiava dela, misturado com os aromas sutis de sabonete e xampu, trazendo um aroma inesperadamente doce. 

— Narumi... Narumi… 

Ela murmurou meu nome durante o sono, suas palavras foram um ataque silencioso à minha compostura. Como um gato buscando carinho, ela esfregou o rosto levemente contra mim, sua bochecha roçando meu braço. Isso me fez cócegas, tanto física quanto emocionalmente. Era doce, inebriante. Senti como se minha cabeça fosse entrar em curto-circuito. 

— Sinceramente. Você poderia ser um pouco mais cautelosa. Sério.

Afinal, sou um garoto… 

Embora, é claro, não conseguisse dizer isso em voz alta. No final, tudo o que pude fazer foi sentar-me ali em silêncio, com cuidado para não perturbar seu rosto angelical adormecido, até a hora de fechar as instalações. 

☆ 

Quando o local estava prestes a fechar, acordei Kazemiya gentilmente e nos mudamos para o restaurante familiar. 

Como era de se esperar em um horário tão avançado da noite, quase não havia clientes por lá. Nosso plano era ficar ali até de manhã, então, depois de pedir bebidas, começamos uma longa noite de maratona de filmes. Usando nossos smartphones, sincronizamos e começamos o mesmo filme com um “Prontos... já!” Naturalmente, para não incomodar os outros clientes, usamos fones de ouvido. Como Kazemiya havia deixado seus fones de ouvido com orelhas de gato em casa, compramos um par de fones com fio em uma loja de conveniência antes de começar. 

Assistimos a um filme e compartilhamos nossas opiniões depois. Fazendo pausas para lavar o rosto, escovar os dentes ou usar o banheiro para ficar acordados, alternamos entre assistir filmes e conversar até o amanhecer. 

— Ugh... estou com tanto sono...

— Quer que eu pegue um café para você no bar?

— Um café com leite, por favor.

— Certo.

Ela devia estar realmente exausta. Normalmente, ela começaria com um chá, mas hoje foi direto para o café com leite. No bar, peguei um copo transparente, enchi-o com cubos de gelo e selecionei café com leite na máquina familiar. Ao contrário das bebidas normais, em que ela costumava encher o copo cerca de 80%, o volume de distribuição predefinido da máquina significava que eu não podia adicionar mais, mesmo que ela preferisse assim. 

— Aqui está.

— Obrigada...

Ela tomou um gole do café com leite. Embora a cafeína não faça efeito imediatamente, parecia animá-la um pouco. Depois de alguns goles, sua expressão começou a parecer normal novamente. 

— Ontem foi bem divertido, né?

— É... Assistir a uma série inteira com alguém é muito mais divertido.

Era uma trilogia de filmes de ação de grande sucesso. Eles eram leves e fáceis de assistir, o que tornava difícil parar em apenas um. 

Foi realmente divertido…

— Foi realmente divertido.

Aparentemente, Kazemiya sentia o mesmo, relembrando a noite anterior com um sentimento semelhante. 

— Você parece não querer que isso acabe, mas ontem não foi a última vez. Há muito mais diversão por vir hoje, amanhã, depois de amanhã e além.

— Mesmo que estejamos tecnicamente fugindo?

— É isso que torna tudo ótimo.

— É verdade — ela sorriu.

Um sorriso suave e angelical que me trouxe alívio. A garota que antes ficava parada sem rumo na chuva, parecendo perdida e abandonada, não estava mais lá.

— Então, Narumi, para onde devemos ir hoje?

— Vamos ver. Primeiro, provavelmente devemos encontrar um lugar para tirar uma soneca durante o dia e, depois disso... talvez possamos ir ao cinema?

— Vamos lá! Será que há algum filme bom passando por aqui?

— Vou dar uma olhada. Ah, e também vou procurar lugares onde possamos tirar uma soneca.

— Boa ideia. Estou precisando dormir... Mas seria melhor passar a noite em algum lugar.

— Se é assim, por que você não vem para casa? É só isso que precisa fazer. Não é mesmo, Kohaku-chan?

No momento em que aquela voz ecoou no ar, Kazemiya empalideceu.

— Kuon!?

Em frente à nossa mesa estava uma mulher sozinha. Ela provavelmente estava disfarçada, usando um chapéu e óculos escuros. Mas, como se achasse desnecessário enfrentá-la, ela tirou os óculos escuros, revelando um rosto que era exatamente igual ao de Kazemiya, deslumbrante e elegante. 

Seu longo cabelo loiro era idêntico ao de Kazemiya, exceto pelas mechas azuis entrelaçadas nele. A diferença mais marcante, no entanto, estava em seus olhos heterocromáticos, um dourado e o outro azul. Era o mesmo rosto que eu tinha visto em videoclipes, na TV e nas novelas que assistimos ontem. 

Em pé diante de nós estava ninguém menos que a irmã mais velha de Kazemiya Kohaku.

☆ 

Para mim, os restaurantes familiares não passavam de lugares para fugir, mas depois de conhecer Narumi, eles se tornaram algo especial para mim.  Um lugar onde nem a casa nem a família podiam nos prender, um lugar só para nós dois. Pelo menos era para ser assim. 

— Por que... por que você está aqui?

— Porque eu fui procurar por você. Não é óbvio? A Kohaku-chan fugiu de casa! Minha irmãzinha preciosa, a pessoa mais importante do mundo para mim, fugiu! Claro que fiquei preocupada... Fiquei muito, mas muuuuito preocupada!

Enquanto falava, a voz e o corpo da minha irmã começaram a tremer, como se ela tivesse atingido o limite do seu autocontrole. 

— Kohaku-chan! 

Com um grito poderoso, claramente resultado de seu diafragma bem treinado de cantora, ela se jogou nos meus braços. 

— Aaaahhhh! Kohaku-chan, Kohaku-chan, Kohaku-chan! Estou tão feliz! Tão, tão feliz! Estou tão feliz que você esteja bem!

— E-espere, mana! Não grite assim!

Olhei em volta nervosamente. As pessoas poderiam reconhecer a voz dela como Kuon, mesmo que não pudessem ver o rosto dela enquanto ela se agarrava a mim. Felizmente, estávamos sentados em um canto do restaurante, longe dos outros clientes.

Pelo menos por enquanto, a identidade dela parece segura. 

— Quando aquela velha horrível disse que te expulsou, fiquei tão preocupada! É muito perigoso você sair de casa sozinha à noite! Não conseguia parar de pensar onde você tinha ido! E se algo terrível tivesse acontecido com você? E se você tivesse se envolvido em algum crime?

— Desculpe. Eu não pensei direito.

— Exatamente. Você precisa pensar um pouco mais! Ufa... Meu coração quase explodiu em um milhão de pedacinhos! Mas eu entendo. Sei como você deve ter se sentido e, honestamente, a verdadeira vilã aqui é aquela velha horrível. Não quero ser muito dura com você, mas... você tem que entender que qualquer coisa poderia ter acontecido!

Sua voz falhou enquanto ela falava, cheia de lágrimas. Sua preocupação era alta e clara demais. Agora, a culpa começou a me dominar, lenta mas seguramente.

— Ugh... Kohaku-chan...

— Mana... Eu... Eu estou realmente muito… Eu não aguento!


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— Aaaah... Isso é o que eu precisava... Com isso, posso sobreviver a sete noites sem dormir... Cansada ou não, é sempre a Kohaku-chan... Seja primavera, verão, outono ou inverno, a Kohaku-chan está sempre na moda...

— Mana!

É verdade. Ela não tinha estado muito em casa ultimamente, então eu quase tinha esquecido... mas era assim que a Kuon era.

— Me solta logo!

— Aaaah... Mas é um reencontro tão emocionante...

Consegui afastá-la de alguma forma. Fazer isso na frente da Narumi foi tão embaraçoso...

— Sério, para com isso. Meu amigo está olhando...

— Amigo?

Finalmente, ela voltou seu olhar para Narumi. Naquele momento, Narumi fez uma pequena reverência. 

— Prazer em conhecê-la. Eu sou-

— Narumi Kouta, certo? — antes que Narumi pudesse terminar de se apresentar, minha irmã disse o nome dele. 

— Você conhece o Narumi?

— Sim, eu o conheço.

Hoje deveria ser a primeira vez que a maninha e o Narumi se encontravam. 

Será que...

— Mãe te contou sobre ele?

— Como se fosse possível. Você acha que aquela mulher compartilharia algo assim?

Ela sorriu com desdém, seu olhar de desprezo direcionado a alguém que não estava presente. No momento em que ela pronunciou as palavras “aquela mulher”, todo o calor pareceu desaparecer de sua voz. 

— Eu mesma investiguei. Muitas coisas... Ah, a propósito, sou Kazemiya Kuon. Irmã mais velha de Kohaku-chan. Prazer em conhecê-lo.

— Igualmente. É um prazer conhecê-la.

— Sim. E obrigada por cuidar de Kohaku-chan.

— Eu não a protegi e nem nada. Eu só queria apoiar uma amiga.

— Uhum, é disso que eu gosto. É bom saber. Sinto-me aliviada por saber que a Kohaku-chan tem um amigo como você. Tão diferente da Shiori-chan. Gosto dessa vibração.

Kuon acenou com a cabeça, satisfeita, enquanto olhava para Narumi. Seu sorriso era deslumbrante, como estrelas cintilando em um céu noturno escuro como breu. 

Então, com o mesmo sorriso imutável, ela bateu palmas como se tivesse acabado de ler um livro agradável. 

— Tudo bem! Vamos encerrar esse joguinho de fuga. Hora de ir para casa!

Suas palavras, ditas com um tom alegre, mas sincero, pareceram água gelada derramada diretamente sobre meu coração. 

— Eu não vou…

Consegui soltar as palavras.

Em qualquer outro lugar, eu não teria conseguido. Sem Narumi ao meu lado, eu não teria conseguido, mas este lugar, meu refúgio seguro, era um lugar que eu não queria perder e com Narumi aqui, encontrei minha voz. 

— Eu não vou voltar. Nunca. Se você vai voltar, vá sozinha.

— Por quê? Você não se cansou das suas férias de verão?

Sua frase casual acendeu uma faísca de raiva em meu coração congelado. 

— Não foram férias. Foi uma fuga. Eu nunca mais quero voltar para aquela casa.

— Fuga?

— Isso mesmo. Eu já deixei aquela casa. Então...

— Você está falando sério?

Se suas palavras fossem zombeteiras ou cheias de desprezo, eu poderia ter respondido. Mas não eram. Não continham nada disso. Em vez disso, eram calmas, ponderadas e firmes, como se explicassem a dureza da realidade a uma criança. 

— Estou falando sério... É isso mesmo!

— Entendo. Então, Kohaku-chan, você sofreu o suficiente para acreditar nisso de verdade, não é? Sinto muito. Sou sua irmã e não pude fazer nada por você.

— Não é apenas algo em que acredito...

— Não é? Então deixe-me perguntar uma coisa.

Eu não queria ouvir isso. Queria dizer para ela não perguntar. Mas minha voz trêmula não conseguiu formar as palavras. 

— Você realmente acha que essa fuga pode durar para sempre?

O fogo que se acendeu dentro de mim começou a piscar e desaparecer. 

— No fundo, você sabia, não é? Que isso não pode durar e que não é realista. Quero dizer, você nem tem um lugar para ficar.

Eu sabia. Sempre soube. Essa vida fugitiva não poderia durar para sempre. No fundo, sempre pensei assim. Narumi provavelmente também pensava assim. 

Nós dois desviamos nossos olhos da realidade e fugimos juntos, como sempre fizemos. 

— Kohaku-chan, você sempre fugiu. Mas isso já resolveu alguma coisa?

Era como se ela pudesse ver através do tempo que Narumi e eu passamos juntos. 

— Não resolveu, não é? Fugir não muda nada. Não conserta nada.

Sua voz calma transmitia a verdade e o frio penetrou profundamente em meu íntimo. Raiva, frustração e tristeza. Tudo se esvaiu. 

— Essa fuga não é diferente. Nada mudará por causa disso. Aquela mulher não se importará com você, Kohaku-chan. Ela verá isso como nada mais do que uma birra infantil. E, no fundo, você sabe que não tem o poder de mudá-la. Não é verdade?

— O que você está dizendo?

— Kohaku-chan, você é frágil — seu sorriso não era forçado. Estava cheio de ternura — Você sempre me perseguiu, apenas para tropeçar, vacilar e desistir. Você se desesperou e fugiu várias vezes. Isso não mudou. Sempre que algo fica difícil, você foge, desvia os olhos da realidade e se deixa levar por um doce sonho. Frágil, frágil... minha querida e preciosa anja.

Ela acariciou gentilmente minha cabeça e me envolveu em seus braços. 

— Desta vez não é diferente. A frágil Kohaku-chan não consegue fazer nada. Vamos acabar com essa farsa de fugir. Volte para casa. Você não consegue suportar a dor de enfrentar a realidade.

Eu não conseguia me mover. 

— Se você vai fugir, é melhor se trancar dentro de casa. Eu cuidarei do resto.

Eu não conseguia escapar. 

— Se você não quer ser magoada por aquela mulher, eu farei com que ela desapareça da nossa casa... Embora, eu suponha que aquela casa já tenha se tornado um lugar terrível para você. Ah! Já sei! Vamos construir uma nova casa, só para você, Kohaku-chan. Um santuário onde ninguém mais e nenhuma família para atrapalhar. Um paraíso para anjos. Preocupada com as despesas? Não se preocupe. Eu cuidarei de você para sempre. É para isso que serve o nome “Kuon”. É para isso que servem minhas músicas. Meu talento, minha própria existência… tudo, tudo, tudo é para você, Kohaku-chan. Essa é a minha felicidade.

Parecia estar presa em uma prisão doce. 

— Hm? Tendi... Eu realmente entendo. Já sei qual é o maior obstáculo… Eu, né?

— Hã?

— Minha existência, Kazemiya Kuon, é o que está causando dor à você, não é?

Eu não consegui responder.  Não consegui dizer nada para negar as palavras da minha irmã. O desejo fraco e sombrio enterrado no fundo do meu coração havia sido exposto. 

— Tudo bem. Não fique tão magoada. Se minha existência é o que está causando dor em você, Kohaku-chan, então eu desaparecerei da sua vista. Isso é o suficiente para me fazer feliz.

Derretendo. 

— Agora, não há motivo para continuar fugindo, não é?

Caindo. 

—Vamos para casa, Kohaku-chan.

Afundando. 

— Kohaku-chan, meu anjo frágil e impotente. Não se preocupe. Eu vou te fazer feliz.

Minha visão. Meu mundo. Meu coração. Tudo está ficando escuro... 

— Você realmente acha que isso faria Kazemiya feliz?

— Narumi?

— Que? — Kuon perguntou. 

— Eu também sou aliado da Kazemiya Kohaku.

— Que nobre. Você foi arrastado para a fuga da Kohaku-chan, não foi? Mas isso é um assunto de família. Pessoas de fora não devem se intrometer.

É verdade…

Narumi se envolveu por minha causa. Ele não deveria ter sido arrastado para isso. 

— Fui eu quem convenceu Kazemiya a fugir.

— O quê?

Narumi olhou diretamente para minha irmã sem vacilar e disse:

— Kazemiya estava prestes a ir para casa no início, mas eu a impedi. Eu a convenci com palavras doces, a manipulei e a convenci a fugir comigo.

Eu não conseguia acreditar no que Narumi estava dizendo.

Não, isso não é verdade. Isso não é verdade de jeito nenhum. Fui eu quem o envolveu nisso. Ele só estava tentando me ajudar.

— O que... você está dizendo? Não, isso está errado. Mana, o Narumi não...

— Não está errado.

Interrompendo-me com clara determinação, Narumi continuou a encarar minha irmã sem vacilar.

— Kuon-san, você sabe, né?

— Eu sei o quê?

— Que tipo de expressão Kazemiya estava fazendo no dia em que saiu de casa?

A torrente de emoções negras que jorrava da minha irmã parou.

— Naquele dia, Kazemiya parecia que estava prestes a chorar.

— …

— Mesmo que ela não chorasse externamente, mesmo que ela segurasse as lágrimas, acho que ela estava chorando por dentro.

— …

— Eu queria que Kazemiya sorrisse. Como ela sempre faz. Por isso a convenci a fugir. Se ela tivesse ido direto para casa, não teria sorrido.

Minha irmã não disse nada, ouvindo silenciosamente as palavras de Narumi. 

— Embora... houvesse outro motivo, um motivo mais egoísta.

— Um motivo mais egoísta?

— Eu queria monopolizar o tempo de Kazemiya.

— O quê!?

— Monopolizar!? — minha voz saiu num guincho estranho — Na-Narumi!? O que você está dizendo!? Não brinque numa hora dessas!

— Não estou brincando. Estou falando sério. Eu queria ajudar Kazemiya e vê-la sorrir. Mas, mais do que isso, eu a queria só para mim. Essa é a principal razão. Desculpe por te envolver no meu egoísmo.

O que esse cara está dizendo com essa cara séria!? Não foi assim que aconteceu! Fui eu quem invadiu o espaço dele! Por que Narumi... está assumindo toda a culpa assim? 

— Heh... Estou começando a gostar de você. Continue.

— Se você quiser levar Kazemiya de volta, terá que lidar comigo primeiro.

— Você acha que não há outra maneira de levá-la para casa? Ou prefere envolver a polícia?

— Você disse anteriormente que esta era apenas uma viagem de férias de verão, certo? Isso está correto. Esta é uma viagem. Eu disse isso à minha família quando saí de casa.

Ah... a carta que ele deixou quando partiu... 

— Se isso é apenas férias, envolver a polícia só causaria problemas desnecessários e, no final, não seria você quem enfrentaria as consequências? Afinal, você é a famosa cantora e compositora Kuon.

Por um breve momento, o silêncio tomou conta do ambiente. O barulho do restaurante era o único som enquanto Kuon e Narumi se encaravam sem se mover. 

— Interessante. Você é a primeira pessoa a me enfrentar assim. E por Kohaku-chan, nada mal. Eu gosto disso.

Depois de observar Narumi por um tempo, minha irmã se levantou silenciosamente. 

— Bem, quanto àquela mulher, eu não ficaria incomodada mesmo que isso causasse um escândalo. Não há nada neste mundo mais importante para mim do que Kohaku-chan. Eu não poderia me importar menos com qualquer outra coisa — mas então, ela continuou, olhando para Narumi de cima para baixo — Vou deixar isso passar por enquanto, pelo seu bem. Narumi Kouta.

— Bem, obrigado por isso.

Desviando o olhar de Narumi, ela tirou um par de fones de ouvido brancos e prateados da bolsa. Eles tinham orelhas de gato, um dos meus favoritos, que eu havia deixado em casa.

— Espere... esses são... meus…

— São algo de que você precisa, não é, Kohaku-chan?

Esses fones de ouvido eram minha ferramenta para rejeitar as vozes do mundo. Uma maneira de bloquear coisas desagradáveis. Um meio de fuga. 

Minha irmã os colocou sobre a mesa e pegou a conta, como se fosse substituí-los. 

— Vou ignorar isso por enquanto, graças a Narumi-kun, mas você entende, não é? Esse jogo de fuga não pode continuar para sempre. E Kohaku-chan, você só está causando problemas para Narumi-kun.

— …

— Voltarei amanhã, então esteja pronta.

Parecia que ela estava dizendo “Não adianta fugir” e ela provavelmente estava certa. Eu não sabia como, mas ela conseguiu nos encontrar.

— Kuon-san — Narumi chamou por ela enquanto ela começava a se afastar. 

— O que foi?

— Você disse que Kazemiya é fraca, não foi?

— Isso mesmo. Kohaku-chan é fraca. Ela é um anjo frágil, então eu tenho que protegê-la.

Eu não podia negar suas palavras. Eu sempre fechava meus ouvidos, desviava meus olhos, rejeitava a realidade e fugia.

Eu sou... fraca.

— Kazemiya Kohaku é forte. Forte o suficiente para não precisar que você a proteja.

Seus olhares se cruzaram novamente. Após um momento, Kuon olhou brevemente para mim, não disse nada e finalmente desapareceu de vista.

— ...

Mesmo depois que ela saiu, tudo o que pude fazer foi baixar a cabeça. Suas palavras ainda estavam profundamente gravadas em minha mente. 

Enquanto eu ficava sentado com a cabeça baixa, Narumi se levantou e foi até o bar. Em suas mãos, havia um copo transparente cheio de refrigerante de melão e um copo branco cheio de chá. Um aroma quente emanava do copo, parecia ser chá quente. 

— Mas é verão…

— Não importa. O ar condicionado está forte aqui e isso combina melhor com você agora.

— Obrigada.

— De nada.

Narumi colocou o copo sobre a mesa e, em vez de sentar-se à minha frente, sentou-se ao meu lado. 

— Por que você está sentado ao meu lado?

— Porque me deu vontade. Se você não gostar, eu me levanto.

— Não é que eu não goste.

Isso é injusto. Perguntar assim. Como se eu pudesse dizer que não gosto… 

Desde que se sentou, Narumi não disse nada. Ele apenas ficou em silêncio ao meu lado. Um momento atrás, eu não conseguia imaginar colocar nada nos meus lábios, mas agora, por alguma razão, minha mão alcançou a xícara de chá quente. 

— Está quente.

Parecia que o gelo dentro de mim estava derretendo suavemente. 

— Viu? Mesmo no verão, bebidas quentes não são tão ruins assim.

— Olha quem fala, bebendo refrigerante de melão.

— Afinal, é verão.

— Você beberia isso no inverno também.

— Com certeza. Eu bebo o tempo todo.

— Imaginei.

Nós nos olhamos e não conseguimos evitar rir. Sentada ao lado dele, o rosto de Narumi parecia muito mais próximo. Eu podia ver seu rosto sorridente claramente.

 Eu gosto muito do rosto sorridente de Narumi. 

— Hm? O que foi?

— N-nada…

O que estou pensando em um momento como este? Não é hora para isso. 

— A propósito, não íamos ver um filme hoje? Vamos dar uma olhada em algumas opções.

Narumi pegou seu celular e começou a procurar filmes como se nada tivesse acontecido. Como se a conversa com minha irmã mais velha e todas as palavras que trocamos nunca tivessem existido.

 Mas...

— Narumi. Desculpe. Agora está tudo bem.

Eu não podia continuar causando problemas para Narumi. 

— Minha irmã estava certa. Essa fuga não pode durar para sempre. Você se esforçou para me ajudar. Você nem dormiu ontem à noite, não é? Tudo o que ela disse era verdade. Fui eu quem te envolveu nisso.

Normalmente, eu teria saído furiosa de casa, apenas para voltar rastejando, como sempre. Não passava de uma birra infantil e uma explosão egoísta.

— Desculpe. E obrigada. Agora vou ficar bem.

Narumi fugiu comigo. Ele me tirou da escuridão.

— Vamos para casa. De volta para nossas casas. Vou pedir desculpas à sua mãe por tudo.

Eu já tinha recebido mais do que o suficiente: Um sonho doce e maravilhoso.

Tudo bem. Eu vou ficar bem. Porque não quero incomodar Narumi mais do que já incomodei. 

— Não quero ir para casa.

— Mas eu acabei de dizer que ficarei bem... não foi?

— Não me importo com isso, Kazemiya.

— Hã?

— Não quero voltar para uma casa onde não me sinto confortável. É por isso que quero continuar fugindo. É só isso. Não tem nada a ver com você.

Não há como isso não ter nada a ver comigo. Talvez ele não queira ir para casa, mas não é só isso. Narumi está mentindo. 

Ele é um mentiroso gentil, muito gentil...

— Então tudo bem. Eu voltarei sozinho.

Se eu me forçasse a ir para casa, com certeza Narumi iria... 

— Isso não vai acontecer.

Quando tentei me levantar, Narumi segurou minha mão.

— Você não disse que isso não tem nada a ver comigo?

— Não tem, Mas fazemos parte da “Aliança dos Restaurantes Familiares”, certo? Então, me ajude.

— Isso é injusto. Dizer isso desse jeito.

Injusto. Tão injusto. Se ele coloca dessa forma, não há como eu me afastar. 

— Não me importo se é injusto. Se for pelo sorriso de Kazemiya, farei qualquer coisa.

— Por quê?

— Porque gosto de ver Kazemiya sorrir.

 Somos iguais. 

— Também gosto de ver você sorrir, Narumi.

— Acho que estamos no mesmo barco.

— Sim. No mesmo barco.

Quando começamos a conversar no restaurante familiar, tivemos uma troca semelhante. Desta vez, os papéis se inverteram.

Será que Narumi está pensando a mesma coisa que eu? 

— Inverteu, hein? Em comparação com aquela época.

— Sim.

Ele se lembrou. Narumi se lembrou. Isso me deixa feliz.

— Ei, Kazemiya. Você realmente quer ir para casa?

— Eu não quero ir para casa.

Os sentimentos que eu vinha reprimindo transbordaram. A porta que eu mantinha fechada foi gentilmente aberta por Narumi.

— Eu não quero ir para casa. Eu quero continuar fugindo com você. É isso que eu realmente sinto.

Fugir com Narumi. Esse é o meu verdadeiro sentimento. É assim que eu sinceramente me sinto. Não há dúvida disso. 

— Mas também acho que Kuon está certa. É assim que eu me sinto também.

Deixei escapar uma risada autodepreciativa quando as palavras saíram da minha boca. 

— Sou fraca. Eu persegui ela por conta própria, apenas para falhar, desistir, desesperar-me e fugir dela. Sempre fui uma criança, fazendo birras e causando problemas para a minha mãe... e para você também. Odeio essa fraqueza. Mais do que ninguém, odeio isso. Odeio tanto que me deixa doente.

Admitir minha própria fraqueza foi como apunhalar meu coração com uma faca, repetidamente. As palavras jorraram como uma torrente. 

— Ela não disse nada de errado. Eu sou apenas... uma criança fraca.

— Kazemiya, você é forte.

Por quê? Por que Narumi continua negando a fraqueza que eu já admiti? 

— Como?

— Kazemiya, você sempre ouve as músicas da sua Onee-chan. Você confere todos os novos lançamentos e até vai ao karaokê para praticá-las.

— Bem, sim. Eu gosto das músicas dela. São todas ótimas...

— É exatamente disso que estou falando. Eu nunca conseguiria fazer isso.

— Você não gosta de karaokê?

— Não é isso que quero dizer.

Aparentemente, eu não tinha entendido nada. Narumi deu um sorriso gentil e continuou. 

— Se eu fosse você, provavelmente nem conseguiria ouvir as músicas dela. Eu não ouviria as músicas dela e nem nada parecido. Seria muito doloroso. Eu simplesmente enterraria tudo e fingiria que não existia. Honestamente, eu nunca toquei no dinheiro que aquele pai bastardo me manda.

— Isso... não é nada de especial. Eu só estava ouvindo as músicas dela.

— É especial. Talvez você não veja dessa forma, Kazemiya, mas para mim é muito importante. Não importa o quanto você tente fugir ou o quanto você se machuque, você nunca fugiu da sua irmã.

Suas palavras gentis e doces me fizeram querer me render a elas. Mas, mesmo assim, algo ainda me incomodava. 

— Eu... não pude negar o que ela disse.

— Sempre achei que seria mais fácil se a minha irmã desaparecesse. Se ela simplesmente desaparecesse, as coisas seriam mais fáceis... Se ela não estivesse aqui, eu não teria que me sentir assim. É o que eu sempre... sempre pensei. É assim que eu realmente me sinto. Mesmo que Onee-chan não tenha feito nada de errado.

— Mas isso não significa que tudo seja culpa sua, Kazemiya.

— Ela nunca fez nada de errado, mas pensar que ela deveria desaparecer... isso é terrível. É uma coisa horrível de se pensar.

— Kazemiya.

A mão de Narumi tocou minha bochecha. O calor de sua mão e o cuidado delicado, como se estivesse manuseando vidro, trouxeram meus pensamentos sombrios de volta à superfície. 

— Não se culpe. Não decida que tudo é culpa sua.

— Por quê? Por que você diria algo assim?

— Porque sei que não é a única coisa que você sente.

Os dedos de Narumi acariciaram suavemente minha bochecha, como se estivesse enxugando lágrimas. Mesmo que eu não estivesse chorando, mesmo que nenhuma lágrima tivesse caído, era como se ele pudesse ver algo invisível para mim. 

— Não é tudo o que sinto... Não há mais nada.

— Há sim. Só percebi isso ontem, porém.

— Ontem?

— Ah…

— É verdade... Eu...

— É assim que você realmente se sente, não é?

— Sim... 

Acenei com a cabeça, mantendo minhas palavras ao mínimo, tentando conter as lágrimas que poderiam realmente cair desta vez.  Narumi me fez perceber isso. Havia, sem dúvida, outra verdade dentro de mim sobre como me sentia em relação à Onee-chan. 

— Vamos encontrar sua irmã amanhã.

— Encontrar? E fazer o quê?

— Diga tudo o que você quer dizer a ela.

— O quê?!

Sua sugestão repentina me deixou olhando para ele, de boca aberta. 

— Você deixou ela dizer tudo hoje. Honestamente, não foi divertido de assistir. Fiquei me perguntando por que você parou de discutir no meio do caminho.

— Bem... é porque achei que tudo o que ela disse estava certo...

— Desde o início, nada do que fizemos esteve certo, não é? Tudo isso é apenas fugir. É um erro atrás do outro.

— Agora que você mencionou isso... por que você diz isso com tanta confiança?

— Não é confiança. Eu apenas aceitei isso.

— O que isso significa?

A atitude pragmática de Narumi me fez rir, e de alguma forma, meu sorriso voltou. 

— Eu disse o que queria dizer, então agora é a sua vez, Kazemiya. Amanhã, conte tudo para ela. Coisas que você pensa há algum tempo. Coisas que você sente agora. Até mesmo pequenas reclamações. Vale tudo. Desabafe tudo.

— Sim. Eu farei isso. Mas não sei se minha irmã irá aceitar.

— Ela não precisa aceitar. Apenas diga o que precisa dizer e depois fugiremos novamente.

— Dizer e fugir, hein? 

— Exatamente.

— Ahaha. Gosto disso.

Não muito tempo atrás, parecia que eu estava afundando em um pântano escuro, mas agora, tudo parece diferente.  Meu coração está muito mais leve. Mais quente do que eu poderia imaginar.  Eu me pergunto o porquê. Talvez Narumi possa usar magia ou algo assim. 

— Então, hoje é dia de recarregar as energias. Primeiro, o filme. Depois, karaokê.

— Acho que não devo forçar muito a voz.

— Eu não me importaria de ouvir você gritar roucamente com sua irmã.

— Credo, de jeito nenhum. Não quero que você me ouça com uma voz horrível.

— Gostaria de ouvir pelo menos uma vez.

— De jeito nenhum.

Nosso tempo no restaurante familiar passou num piscar de olhos. Com uma renovada determinação para o dia seguinte e lembranças de momentos maravilhosos, ganhamos nosso segundo carimbo.



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AKEMI FTL

UMA TRADUÇÃO DE FÃ PARA FÃ

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