CAPÍTULO 1 - Uma aliança no restaurante
- AKEMI FTL
- 17 de ago.
- 20 min de leitura
Atualizado: 20 de ago.
Na segunda-feira, a primeira aula da turma D do Segundo Ano do Ensino Médio na Academia Hoshimoto é de matemática.
O início da semana, segunda-feira, é provavelmente o momento em que tanto os alunos quanto os adultos que trabalham estão em seus níveis mais baixos de desempenho, mas somos forçados a lidar com filas intermináveis de números. Reclamar do currículo diabólico que faz com que a matemática seja o primeiro período da segunda-feira, tanto é que tornou-se um tópico básico da nossa turma.
Tendo de alguma forma sobrevivido ao monstro que foi o exame de meio de semestre no início do semestre, a maioria de nós estava agora saboreando a relativa paz e, honestamente, preferia relaxar e ir com calma, mesmo que só um pouco.
— Bom dia, Kouta!
Em meio às conversas dos colegas de classe que temiam a aula de matemática, uma voz alegre me cumprimentou. Era de um garoto com um sorriso brilhante e encantador. Ele tinha um comportamento acessível, era um pouco mais baixo do que a média dos garotos do ensino médio e sua estrutura o colocava logo abaixo do meio na ordem de altura. Até mesmo sua estatura, um tanto pequena, de alguma forma aumentava seu charme.
Parado ali com um sorriso, esperando minha resposta, ele me fez lembrar de um cachorro abanando o rabo.
— Bom dia, Natsuki.
Inumaki Natsuki, meu amigo de infância desde o jardim de infância e, aliás, meu colega de classe também. Nunca estivemos em turmas diferentes e, mesmo agora, como alunos do segundo ano do ensino médio, essa tendência continua. O próprio Natsuki costumava brincar: “Nesse ritmo, vamos zerar o conjunto completo (jardim de infância, ensino fundamental, ensino médio e ensino superior)!”
E, já que estamos falando disso, devo acrescentar que ele costuma dizer: “Se eu tivesse que ter um amigo de infância, gostaria que fosse uma garota bonita!”, mas, sinceramente, sinto a mesma coisa.
— Ei, Kouta. Quer sair para algum lugar depois da escola hoje?
— Desculpe. Tenho que trabalhar de novo hoje.
— Aff… De novo? Você tem sido assim desde que começamos nosso segundo ano.
— Eu fiz mais turnos.
— Porque você não quer ir para casa?
— . . .
Fiquei em silêncio, atingido por sua franqueza, mas meu silêncio falou mais alto do que qualquer palavra.
— Você ainda não está se dando bem com sua nova família?
Não vendo mais sentido em ficar quieto, eu relutantemente falei.
— Sinceramente, ainda me sinto desconfortável por estar em casa. Não me acostumei com meu novo pai ou minha meia-irmã… Não, é mais como se eu não conseguisse vê-los como família e isso só faz com que eu me odeie.
— Então, você está preenchendo sua agenda com turnos extras e matando tempo no restaurante depois do trabalho. Isso é... honestamente, um pouco triste. Sua meia-irmã não é uma pessoa ruim, é? Ela está até tentando ser amigável, certo?
— Ela é a melhor aluna que tirou as melhores notas, cara. Imagine ficar preso a uma irmãzinha tão perfeita.
Na primavera anterior ao segundo ano, minha mãe se casou novamente. Seu novo marido era um assalariado que trabalhava para um fabricante de brinquedos. Ele não é um cara ruim, na verdade, acho que ele é uma boa pessoa. Se minha mãe o escolheu, não tenho nada a reclamar. Ela me criou sozinha e quero que ela encontre sua felicidade. Desejo sinceramente o melhor para ela.
Como parte do acordo, minha mãe e eu nos mudamos para a casa dele.
Passamos de um pequeno apartamento para uma casa pitoresca de dois andares. De modo geral, nosso padrão de vida melhorou. Meu novo pai é uma boa pessoa e me trata bem. É uma vida feliz. Provavelmente sou abençoado, mas havia dois problemas.
O primeiro era o fato de que ele tem uma filha. Ela é um ano mais nova do que eu e começou a frequentar a Academia Hoshimoto nesta primavera. É uma excelente aluna, ótima em esportes e até mesmo fez o discurso de representante dos calouros na cerimônia de entrada.
Viver sob o mesmo teto que uma garota da minha idade me deixou sem saber como agir.
O segundo problema é muito mais simples: simplesmente não consigo me sentir à vontade naquela casa.
Não me adaptei à minha nova família. Não me adaptei àquela casa e, por isso, evito ir para casa, fazendo turnos extras em um restaurante familiar após o trabalho.
— Olha, isso pode ser um pouco intrometido, mas você não se importa com isso? Trabalhar mais e chegar tarde em casa logo depois de começar uma nova vida com sua mãe e seu padrasto? Acho que eles podem perceber e começar a se preocupar.
— Eu sei. Me sinto mal por minha mãe e meu novo pai, mas... mesmo sabendo disso, não consigo me sentir confortável lá.
Não há nada que eu possa fazer a respeito. Conheço o problema e sei que preciso consertá, só que por enquanto, eu simplesmente... não consigo.
— Hmm, entendi. Se é incômodo, é incômodo. Algumas coisas simplesmente não podem ser evitadas.
Essa atitude casual e despreocupada, sem me forçar a “me esforçar mais” ou “fazer um esforço", é uma das coisas que gosto no Natsuki.
— De qualquer forma, você é bem-vindo para passar o tempo em minha casa também. Vamos sair de vez em quando!
— Sim. Vou aceitar sua proposta um dia desses.
Acho que era isso que o Natsuki queria dizer o tempo todo: Que eu sempre terei um lugar para onde fugir.
É reconfortante. Especialmente porque Natsuki sabe sobre meu pai anterior e ele é a única pessoa com quem posso realmente relaxar.
— Ei, Kazemiya-san. Eu queria lhe perguntar uma coisa.
A voz de uma garota chegou aos meus ouvidos, tirando-me de meus pensamentos.
— O que é?
Mesmo sem saber que Kazemiya ainda não se sentia à vontade com seus novos colegas de classe, seu comportamento foi brusco. Sua aura naturalmente fria e distante amplificou a impressão de distância.
Sentada em sua cadeira, seu smartphone estava horizontalmente sobre a mesa e seus fones de ouvido de gato, agora sem as orelhas, repousavam em seu pescoço. Provavelmente, ela estava assistindo a um vídeo até que a garota se aproximou dela.
Embora ela parecesse relutante, Kazemiya voltou sua atenção para a conversa.
— Hã... A sua irmã é a cantora Kuon, certo? — A voz da garota estava cheia de entusiasmo.
Kuon era conhecida entre os alunos do ensino médio como uma cantora e compositora extremamente popular. Seu nome verdadeiro? Kazemiya Kuon. A irmã mais velha de Kazemiya Kohaku por dois anos.
Esse fato era amplamente conhecido em toda a escola, tornando a Kohaku uma pequena celebridade por si só. Mas, para ser sincero, sua fama não se devia apenas à irmã.
— Ela é, mas... e o que tem ela?
— Sou um grande fã da Kuon! Então... por favor, poderia me apresentar a sua irmã?!
— Não.
A rejeição direta e imediata de Kazemiya cortou o ar como uma lâmina.
Ela deve ter recebido pedidos como esse inúmeras vezes. Sua recusa foi eficiente e direta.
— Você não poderia abrir uma exceção? Ou pelo menos me dar um autógrafo? Sou fã da Kuon desde sua estreia e...
— Você não me ouviu?
Sua voz ficou visivelmente mais fria.
— Eu disse que não.
— Ah...
A garota que havia feito a pergunta ficou sem palavras, parecendo estar impressionada com a presença enérgica de Kazemiya. Incapaz de responder, ela virou as costas e se retirou para seu assento. Kazemiya, agora sem se incomodar, colocou os fones de ouvido novamente e voltou ao vídeo.
Não ficou claro se ela ouviu ou não os murmúrios de “O que foi isso?” e “Ela é tão grosseira com a gente”. Enquanto isso, aqueles que estavam observando calmamente a troca de palavras voltaram às suas conversas como se nada tivesse acontecido.
— Nossa, foi como ver alguém pisar em uma mina terrestre.
— Mina terrestre?
— Sim. Kazemiya-san realmente não gosta quando as pessoas falam de sua irmã. Ouvi dizer que, no ano passado, muitas pessoas foram até ela com pedidos semelhantes e isso foi um grande incômodo para ela.
— Não sabia disso.
— Bem, nós estávamos em turmas diferentes na época. Eu só ouvi isso de outra pessoa. Além disso, há também tem outros rumores sobre ela.
— Ah... aquelas coisas, né?
Isso eu já tinha ouvido. Na verdade, os outros rumores sobre a Kazemiya Kohaku eram muito mais predominantes em minha mente.
— Coisas como o fato dela sair tarde da noite ou estar envolvida com algumas pessoas duvidosas… quem sabe se isso é verdade. Não gosto muito desse tipo de boato sem fundamento. Sinceramente, ouvir essas coisas é exaustivo. Até pensei em comprar um par de fones de ouvido como os dela.
A maneira como Natsuki disse isso sugeriu que os rumores provavelmente não tinham fundamento.
Natsuki tem um amplo círculo de amigos, então ele ouve mais fofocas do que a maioria. Mas, em vez de levar tudo ao pé da letra, ele verifica as histórias de várias pessoas e até investiga por conta própria quando necessário. Esse é o tipo de pessoa que ele é.
— Bem… Seja lá qual for o boato, não importa para mim.
— É, você é assim mesmo, Kouta. Você não é do tipo que mete o nariz nos assuntos dos outros.
— Mas isso não é normal?
— De jeito nenhum. Muitas pessoas se metem na vida pessoal e na família dos outros por pura curiosidade ou interesse egoísta. Como aquela garota de antes.
Esse foi um comentário bastante duro sobre a garota que havia abordado Kazemiya. Eu me pergunto se Natsuki se sentiu muito mal com a conversa de agora.
Enquanto isso, Kazemiya permaneceu tão calma como sempre, silenciosamente sugada em seu vídeo. Seu comportamento não era diferente de quando ela estava no restaurante da família à noite.
Era como se ela já tivesse esquecido a interação com a garota mais cedo... ou, pelo menos, foi o que me pareceu.
— Oh, já tocaram o sinal.
A campainha da escola ecoou pelo prédio, interrompendo meus pensamentos. A conversa na sala de aula parou quando meus colegas, incluindo Natsuki, voltaram aos seus lugares. Kazemiya também retirou seus fones de ouvido e começou a se preparar para a aula.
Não importa.
O que Kazemiya estava pensando, ou qual é o relacionamento dela com a família, não tinha nada a ver comigo. Eu não estava interessado.
Não me meto na família dos outros... Na verdade, eu mal consigo administrar minha própria família.
☆
Depois da escola, como sempre, após terminar meu trabalho de meio período, fui direto para o Flowers.
— Pedimos desculpas, mas, por favor, aguarde um momento.
O restaurante estava excepcionalmente lotado hoje. Embora normalmente seja movimentado, é raro vê-lo tão cheio. Olhando para dentro, parecia que vários grupos grandes haviam chegado coincidentemente ao mesmo tempo.
Encontrar uma situação como essa… eu não sei dizer se seria uma boa ou má sorte. Para mim, não importava quanto tempo eu teria de esperar, já que estava aqui apenas para matar o tempo.
Toquei no botão “1” no terminal próximo à entrada, e um pedaço de papel parecido com um recibo foi impresso com o número “26”. Pegando o bilhete, esperei calmamente pela minha vez.
— Número 26, por favor.
Guiado por um garçom, caminhei pelo movimentado restaurante cheio de grupos animados.
Normalmente, eu poderia escolher qualquer assento disponível com um “Por favor, sente-se onde quiser”, mas isso não foi possível hoje devido à multidão. Meu lugar habitual foi ocupado por um grupo de mulheres desconhecidas que pareciam estar no meio de uma reunião com um tablet espalhado pela mesa.
— Por aqui, por favor.
— Ah, obrigado.
Fui levado do meu lugar habitual para outra mesa.
A mesa parecia recém-limpada, com leves traços de um pano úmido. Fora isso, não tinha nada de extraordinário. Deixei-me guiar, sentando-me no banco moderadamente firme.
— . . .
Foi só depois que me sentei que percebi.
Na mesa ao lado da minha, separada apenas por espaço suficiente para alguém passar, estava uma garota usando fones de ouvido e assistindo a vídeos no celular, exatamente como estava hoje de manhã.
Era Kazemiya Kohaku.
Congelei de surpresa, olhando para ela sem querer. Voltando aos meus sentidos, abri rapidamente o menu para agir naturalmente. Não havia motivo para ficar tão chocado. Eu estava simplesmente sentado ao lado dela, só isso.
Eu realmente não precisava dar uma olhada no cardápio, pois já tinha vindo aqui muitas vezes e já o tinha memorizado, mas folhear o cardápio me pareceu menos chamativo do que parecer um frequentador experiente. Às vezes, mesmo quando não tenho um prato específico em mente, navegar pelas fotos pode me deixar tentado.
Foi exatamente isso que aconteceu dessa vez.
Um omelete de arroz dourado e brilhante retratado no cardápio chamou minha atenção. Rapidamente, eu apertei o botão para chamar um garçom.
— Um omelete de arroz dourado com molho especial, por favor.
Depois de fazer meu pedido, me servi com um copo de coca-cola e voltei ao meu assento. Kazemiya, como sempre, manteve os fones de ouvido e continuou assistindo a vídeos em seu telefone.
Que tipo de vídeos ela assiste o tempo todo?
Esse pensamento ocioso passou pela minha cabeça quando me sentei novamente. Enquanto passava o tempo no meu celular, meu pedido chegou.
— Obrigado pela comida.
Por baixo da omelete fofa havia queijo derretido, amolecido pelo calor. A rica doçura do queijo e do ovo dançava em minha língua. O molho especial colocado por cima era o equilíbrio certo, evitando que o sabor se tornasse monótono durante todo o tempo.
— Obrigado pela refeição.
Terminei o arroz com omelete em um instante e estava bom demais para parar de comer. Como um garoto do ensino médio, eu não teria me importado com uma porção um pouco maior, mas isso é apenas um desejo.
Normalmente, eu tiraria um momento para relaxar antes de ir para casa, mas para alguém como eu, que se sentia desconfortável em casa, era aqui que eu queria ficar. Pensei em percorrer minha linha do tempo e abri meu aplicativo de mídia social.
— . . .
Antes que eu pudesse começar, a tela do meu celular mudou para uma notificação de chamada recebida.
Quem estava ligando era minha mãe e eu tinha uma boa ideia do motivo pelo qual ela estava ligando.
Respirando fundo, expirei lentamente, me acalmando. Certifiquei-me de que minha voz não revelaria nenhum dos meus sentimentos antes de atender a ligação.
— Alô, mãe?
— Kouta, onde você está agora?
— Estou voltando do trabalho para casa.
Não era uma mentira, afinal, meu trabalho de meio período já havia terminado e este restaurante estava tecnicamente no caminho para casa.
— Vai demorar?
— Talvez demore um pouco mais. Eu estava planejando jantar fora antes de voltar.
De fato, eu já tinha terminado de comer, mas pedir a sobremesa já seria verdade, logo estaria consumindo algo.
— Se você está com fome, não precisa comer fora. Era só voltado para casa...
— Eu fico com muita fome depois do trabalho. Queria comer algo rápido.
Isso não é realmente uma mentira... ou pelo menos não deveria ser. O fato de eu sentir fome depois de terminar o trabalho é inegavelmente verdadeiro.
— Certo... Bem, tome cuidado em seu caminho para casa, certo? Akihiro-san e Kotomi-chan estão esperando por você também.
— Certo. Mas, na verdade, não há necessidade de ficarem esperando por mim. Seria mais fácil para eles apenas relaxarem e não se preocuparem tanto comigo.
Tsujikawa é o sobrenome do novo marido da minha mãe, Akihiro Tsujikawa. Akihiro é meu novo pai e Kotomi Tsujikawa é minha meia-irmã.
Kotomi está em uma idade em que o fato de ser conhecida por ter um meio-irmão apenas um ano mais velho pode afetar sua vida escolar. Ela acabou de começar o ensino médio e ainda está navegando em novos relacionamentos, o que é um momento delicado. Por esse motivo, embora meu sobrenome legal seja agora “Tsujikawa”, continuo a usar meu antigo sobrenome, “Narumi”. Sou grato por esse acordo. Só compartilhei isso com algumas pessoas de confiança, como o Natsuki, que sabem como manter as coisas para si mesmas.
— Tudo bem. Vou avisá-los. Só tome cuidado, porque já está escuro aí fora.
— Entendi. Vou desligar agora.
Declarando o fim da ligação, eu mesmo desliguei.
— Ufa...
Um suspiro de alívio escapou de meus lábios.
Não é que eu tenha um relacionamento ruim com minha mãe. Na verdade, é muito bom. Eu até costumava ler seus manuscritos e lhe dar feedback, afinal, ela é escritora.
Essa é a proximidade que temos como mãe e filho.
No entanto, uma ligação telefônica que não durou nem cinco minutos me deixou tão esgotado.
— Acho que devo pedir uma sobremesa.
Realmente, não posso deixar de rir de mim mesmo. A ginástica mental que estou fazendo, convencendo-me de que “não é uma mentira, apenas não é a verdade completa” não passa de uma desculpa boba para pedir outra coisa e prolongar meu tempo aqui.
Para mim, é o custo da paz de espírito, porém para alguém de fora, provavelmente parece um desperdício de dinheiro.
Decidindo por algo barato, pedi uma bola de sorvete de chocolate. Mas, assim que pedi, me arrependi de não ter optado por um parfait. Afinal, o parfait teria demorado mais para chegar.
— Você não está se dando bem com sua família?
Que voz bonita.
Levei um momento para perceber que a voz era dirigida a mim. Quando me virei para olhar, vi a fonte… era Kazemiya Kohaku, sentado na mesa ao lado da minha.
— Hã? — Fiquei paralisado como uma estátua, pego de surpresa pela pergunta.
Quando penso em Kazemiya Kohaku, a primeira palavra que me vem à mente é “distante”. Frio, distante, mas de uma beleza impressionante. Um brilho solitário que mantém os outros à distância. Essa é a imagem que tenho dela: Uma garota que nunca inicia uma conversa com ninguém.
Pelo menos eu nunca a vi fazer isso.
Por outro lado, só somos colegas de classe desde o início do segundo ano, portanto, mal a conheço como colega de classe, muito menos pessoalmente. Fora da escola, o único lugar em que a vi foi neste lugar. Pelo que observei, ela nunca conversa com amigos, raramente usa o telefone para fazer ligações e só fala quando faz pedidos aos funcionários.
— Você está me perguntando?
— Para quem mais poderia ser?
É justo, afinal, Kazemiya estava sentada em um canto do restaurante e eu era a única pessoa por perto.
— Ah, desculpe. Eu não queria escutar, mas acabei de terminar meu vídeo no momento em que você estava falando. Não pude deixar de ouvir.
— Bem, eu que estava falando ao telefone em público, então a culpa é parcialmente minha...
Eu havia presumido que os fones de ouvido dela bloqueariam qualquer som. Aparentemente, ela havia terminado de assistir ao vídeo em um momento inconveniente.
— Quanto à minha família... acho que as coisas com minha mãe estão bem. Temos um bom relacionamento, eu diria.
— Com sua mãe, hein… — Um suor frio escorreu pela minha costa.
Droga, isso soou como se eu estivesse dizendo que não me dou bem com mais ninguém.
A rigor, meu relacionamento com meu padrasto e minha meia-irmã não é ruim. Sei que eles estão tentando se aproximar de mim. Sou apenas eu que não estou respondendo. Mesmo assim, eu não esperava que Kazemiya percebesse isso tão rapidamente. Ela é surpreendentemente perceptiva.
— Me desculpe por isso. Foi estranho da minha parte perguntar assim do nada.
Talvez minha reação cautelosa tenha transparecido em meu rosto, porque ela sorriu se desculpando.
— Não tem problema. Sinceramente, é verdade que as coisas estão estranhas com todo mundo, exceto com minha mãe.
— Entendo.
Seguiu-se um breve silêncio antes de ela falar novamente.
— Também não estou me dando bem com minha família.
— O quê?
O fato de ela ter falado sobre a família, um assunto que eu supunha estar fora do padrão de, basicamente, dois desconhecidos, me pegou completamente desprevenido. Minha reação de surpresa deve ter sido óbvia, pois ela me lançou um olhar conhecedor.
— Eu perguntei sobre sua família antes, certo? Não seria justo se eu não compartilhasse algo sobre a minha.
— Você não precisa se preocupar com isso.
— Mas eu me preocupo. Eu me preocupo com esse tipo de justiça, mesmo que você não se preocupe. Engraçado, não é? Alguém que diz que não se intromete na família dos outros, como eu, fazendo exatamente isso.
— Ah, o mesmo aqui.
As palavras saíram por reflexo.
— Sério?
— Quero dizer, mal consigo lidar com minha própria família. Quem tem energia para se envolver com a de outra pessoa?
— Haha. Até nossos motivos são os mesmos.
Então, Kazemiya consegue rir assim.
Esse pensamento passou pela minha cabeça antes que eu percebesse que estava pensando nisso e me surpreendi, mas a expressão no rosto de Kazemiya naquele momento não era algo que eu já havia visto em sala de aula. Não pude deixar de me sentir atraído por ela.
— Hmm... Já entendi. Então, como você é o mesmo, Narumi.
— Espere, você sabe meu nome?
— Claro que sei. Somos colegas de classe, não somos?
Por essa eu não esperava.
Para mim, Kazemiya Kohaku era alguém que sempre usava seus fones de ouvido, aparentemente indiferente a tudo ao seu redor. Eu supunha que ela nem se incomodaria em lembrar o nome de seus colegas de classe.
Não que eu tenha muito espaço para falar, considerando que ainda há alguns colegas de classe cujos nomes não sei, mas isso é algo que vou guardar para mim mesmo, já que admitir isso na frente do Kazemiya seria muito embaraçoso.
— Além disso, se o cara que está sentado no mesmo lugar quando venho aqui for um colega de classe, é difícil não lembrar.
— Sim, você tem razão.
Mesmo que Kazemiya não fosse muito conhecida na escola, eu ainda me lembraria dela. Alguém que sempre vinha no mesmo lugar e se sentava no mesmo lugar.
— Então, o motivo pelo qual nós dois viemos aqui... é o mesmo?
— Provavelmente. Eu diria que é o mesmo.
— Porque é desconfortável em casa, então matamos o tempo aqui. — Dissemos isso em perfeito uníssono, como se tivéssemos praticado.
Não pude deixar de rir, e, aparentemente, Kazemiya também não.
— Acho que nos damos bem.
— Sim, nós damos.
Uma risada escapou de mim. Eu nunca teria imaginado que havia outro aluno por aí, também desconfortável em casa, que preferia passar o tempo neste restaurante familiar.
— Aqui está seu sorvete de chocolate.
O garçom trouxe minha sobremesa no momento certo.
— Aqui está a sua sobremesa de álibi.
— Isso tá parecendo um desperdício de dinheiro. Até eu acho isso.
— Não é um desperdício. Para nós, é o custo de comprar paz de espírito. Uma despesa necessária.
— Definitivamente nós realmente nos damos bem.
Nossa conversa continuou enquanto eu terminava de tomar meu sorvete. Talvez fosse porque eu estava falando mais do que comendo, mas o sorvete derreteu mais rápido do que eu conseguia terminar. Eu não estava acompanhando, mas parecia que eu estava demorando mais para comer do que o normal.
— Bem, acho que vou sair.
— Tudo bem. Acho que vou para casa também.
Nós nos levantamos juntos, levando nossos recibos para a caixa registradora. Dessa vez, não houve nenhum impasse constrangedor sobre quem iria primeiro. Do lado de fora, o sol já havia se posto há muito tempo e as luzes da cidade se contrapunham à escuridão que se aproximava.
— Por que você não me acompanha até em casa?

Sua sugestão não foi difícil de entender.
— Isso me dá uma desculpa para ficar mais tempo fora de casa.
— De nada.
Provavelmente foi esse raciocínio que fez Kazemiya sair do restaurante ao mesmo tempo que eu.
Caminhamos lado a lado por um caminho que levava na direção oposta à minha rota habitual para casa. Estradas de asfalto desconhecidas. Prédios desconhecidos. Um caminho que eu não teria feito nem mesmo ontem, mas aqui estava eu, andando por ele com Kazemiya Kohaku. Foi uma sensação... estranha.
Sim, muito estranho…
Ainda esta tarde, eu tinha pensado em Kazemiya como alguém totalmente intocável. Uma pessoa de um mundo diferente do meu. Alguém com quem eu não cruzaria hoje, nem amanhã, nem nunca. E, no entanto, agora, ela parecia tão próxima.
Tão familiar que eu não conseguia deixar de pensar nela como alguém que eu conhecia bem. Provavelmente porque… Eu me senti à vontade.
Não me dou bem com minha família. A ponto de eu preferir ficar em um restaurante familiar até tarde da noite a voltar para casa. Uma pessoa presa à maldição inabalável da família, algo do qual você nunca pode escapar de verdade.
Existe outra pessoa como eu e só esse pensamento já me deixa tranquilo.
— Então, Narumi, quando você chega em casa tão tarde, que desculpa você vai dar para a sua família?
— Como eu disse a eles no telefone mais cedo, algo como se eu tivesse parado para comer depois do trabalho ou precisasse descansar porque estava cansado. Sempre com desculpas diferentes.
— Mas isso não fica difícil de manter depois de um tempo?
— Sim, estou começando a sentir que estou atingindo meu limite. E quanto a você? Alguma dica?
— Eu me limito a dizer: “A vida é minha, então faço o que quero”.
— Uau... que ousada.
— Tenho que ser, senão, não conseguiria lidar com isso. Sempre foi assim. Mesmo que eu saia apenas durante o dia, eles presumem que estou tramando algo ruim ou me metendo em problemas. Eles não confiam em mim. Quero dizer, eu entendo, se algo acontecesse, isso refletiria mal para minha irmã. Mas mesmo assim…
Não é que ela tenha perdido a confiança deles porque sai à noite. Provavelmente é o contrário.
Eles não confiam nela e é por isso que ela acaba ficando na rua até tarde. Se for esse o caso… então, sim, ela não tem outra escolha a não ser reagir da maneira que puder.
— Isso parece mais difícil do que a minha situação.
— Talvez. Mas a sensação de não querer ficar em casa é a mesma, certo?
— Concordo com você nesse ponto.
— Então, você vai voltar para o restaurante amanhã?
— Sim. Eu trabalho amanhã de novo.
— Hmm. Entendido...
Kazemiya parecia estar pensando em algo e a conversa parou por um momento.
— Nesse caso, tenho uma sugestão.
— Uma sugestão?
— Se vamos estar aqui de qualquer maneira, não seria mais divertido conversar como hoje? Quero dizer, nós nos damos muito bem... e seria mais fácil inventar desculpas.
Ela tinha razão. Nós realmente nos demos bem durante a conversa de hoje e, sinceramente, o tempo pareceu passar mais rápido do que o normal.
Passar horas sozinho pode ser exaustivo em seu próprio sentido. Se eu tivesse alguém com quem conversar, poderia ser uma maneira mais significativa de passar o tempo do que apenas percorrer as mídias sociais ou navegar em sites.
— Além disso... sinto que posso conversar com você sobre coisas, como desabafar.
— Desabafar? Sobre o quê?
— Muitas coisas. Escola, coisas pessoais... coisas de família.
Ao ouvir isso, não pude deixar de rir.
— Coisas de família, não é? Eu gosto disso.
— O que é tão engraçado?
— Desculpe, mas nunca pensei nisso.
A culpa que sinto em relação à minha família. O desconforto de estar em casa. Às vezes, falo sobre isso com a Natsuki, mas, mesmo assim, há um limite para o que posso dizer.
Se há alguém com quem eu possa desabafar de verdade, alguém que entenda o sentimento de não querer estar em casa... seria Kazemiya.
— E se nós apenas desabafarmos um com o outro, ouvíssemos e deixássemos por isso mesmo? Nada mais e nada menos.
— Sim, isso parece bom. Também se encaixa em nossa dinâmica.
— Tudo bem, então está decidido.
— Sim, então é uma aliança.
— Uma aliança, hein? Está bom. Devemos dar um nome a ela, já que estamos falando disso?
— Como a Aliança Satsuma-Chōshū ou algo assim?
— Hã?
— Isso acabou de surgir em minha cabeça. Talvez eu tenha vivido na era Bakumatsu na minha vida passada.
— A era Bakumatsu, hein.
Kazemiya soltou uma pequena risada.
— Você é mais divertido do que eu pensava, Narumi.
— Bem, deixando a era Bakumatsu de lado, se fôssemos nomear nossa aliança... que tal a Aliança do Restaurante Familiar?
— Simples e fácil de entender… Gostei.
A Aliança do Restaurante Familiar.
Dar um rótulo ao nosso relacionamento dessa forma fez com que toda a situação parecesse um pouco mais natural... ou assim eu pensava.
— É aqui que eu moro.
Depois de sair do restaurante, paramos em frente a um prédio imponente a menos de cinco minutos de distância.
— Obrigado por me acompanhar até em casa.
— De nada... Mas… Nossa… você mora em um lugar muito bom.
— Não adianta nada se é desconfortável morar lá.
— Tem toda razão.
— Uhum, uhum.
Uma rápida olhada no meu celular revelou que já passava das 22h. Voltar para casa daqui com certeza me faria chegar mais tarde do que o normal.
— Já é tarde o suficiente para que eu provavelmente receba alguns comentários quando chegar em casa. Qual é a sua desculpa?
— Para mim, “fiquei até tarde conversando com um amigo” ou algo assim.
— E para mim, será: “Acompanhei uma amiga até em casa, então voltei tarde”. Ah, você deveria acrescentar: “Eu estava com um amigo no caminho de volta, então estava a salvo de qualquer problema”.
— Boa ideia. Vou usar isso.
É claro que o fato de estarem juntos não garante segurança absoluta ou imunidade contra problemas, mas é melhor do que uma garota do ensino médio andando sozinha tarde da noite.
Não que haja necessidade de explicar essa lógica.
— Devemos trocar os contatos antes de nos separarmos?
— Boa ideia. Pode ser útil em breve.
— E, se necessário, posso explicar à sua mãe por você.
— Por favor, não faça isso.
— Estou brincando, obviamente.
Eu não esperava que Kazemiya fizesse piadas como essa. Enquanto eu pensava nisso, terminamos de trocar informações de contato.
— Você não tem um ícone definido para o seu perfil, Narumi.
— Eu realmente não me importo com essas coisas. E você?
A conta da Kazemiya Kohaku foi adicionada ao meu aplicativo de mensagens. O ícone ao lado do nome dela era a foto de um gato branco puro.
— Você gosta de gatos?
— Sim, eu os adoro. Gostaria de ter um, mas minha mãe não deixa, então me contento em assistir a vídeos.
— Então os vídeos que você sempre assiste na escola e no restaurante da família são vídeos de gatos?
— Eu só assisto vídeos de gatos em casa. Meu rosto amolece demais quando eu assisto.
Sua expressão normalmente fria e indiferente se suaviza por causa de um vídeo de gato? Eu até que gostaria de ver isso.
— O que eu assisto na escola ou no restaurante são filmes.
— Ah, legal. Se tiver alguma recomendação, me avise. Preciso de uma desculpa para ficar trancado em meu quarto.
— Recomendações... Tudo bem, vou pensar em algo quando chegar em casa.
— Obrigado... Tudo bem, acho que é aqui que nos separamos.
— Sim.
Eu queria continuar falando. Parecia que Kazemiya sentia o mesmo, pois um leve ar de relutância pairava entre nós.
— Bem, boa noite, Narumi.
— Sim. Boa noite, Kazemiya.
— Amanhã, depois da escola, no lugar de sempre. — Dissemos isso em perfeita sincronia.
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