CAPÍTULO 7 - Lixo, toalha e cama
- AKEMI FTL
- 9 de set.
- 28 min de leitura
— Hã? Que? Mas…
— Ioka! Graças a Deus você está bem…
Ela acordou tossindo quando eu a tirei da água debaixo da ponte.
— Ah… Aruha-kun… Eu… eu…
— Tudo bem. Está tudo bem. Já passou…
Certamente, haveria palavras melhores para animá-la, mas foi tudo o que consegui pensar. Minha cabeça estava uma bagunça, mas pelo menos tentei acariciar gentilmente suas costas enquanto ela chorava. Quando ela se acalmou, pedi desculpas.
— Desculpe por isso. Não consegui pensar em nada no calor do momento.
— Não é isso... Fui eu quem… — ela abraçou seu próprio corpo.
Aquelas chamas estavam definitivamente no auge. O demônio a fez queimar nelas em um piscar de olhos. É verdade que não havia muito o que ela pudesse queimar na ponte, mas sempre havia o risco de a chama se espalhar e atrair mais pessoas. Talvez isso terminasse com as pessoas chamando os bombeiros. Rosy poderia estar chocada demais para isso, mas se um número suficiente de pessoas estivesse assistindo, alguém acabaria tirando uma foto.
É por isso que escolhi o método mais rápido e pulei direto no rio.
É claro que eu não sabia qual era a profundidade real do rio Sakamaki e havia uma boa chance de nos machucarmos gravemente se ele não fosse fundo o suficiente. Apesar disso, eu estava disposto a assumir a culpa. No final, tudo acabou bem, mas definitivamente tivemos sorte.
— Você se machucou?
— Acho que não — Ioka olhou ao redor e verificou seu corpo.
— Graças a Deus… — suspirei aliviado.
Não parece que as chamas vão voltar a qualquer momento.
— Ué!
Mas então, ela levantou a voz como se tivesse percebido algo, passando as mãos pelo cabelo.
— O que foi?
— Meu grampo de cabelo! — disse Ioka, olhando freneticamente ao seu redor.
Eu imediatamente entendi o que ela estava se referindo. O acessório de cabelo em forma de estrela que ela sempre usava havia desaparecido.
— Vamos procurá-lo!
Olhei ao meu redor, no entanto, como estava escuro como breu, não consegui encontrar nada. Voltei para dentro do rio, mas a água estava tão escura que eu nem conseguia ver minhas próprias mãos dentro dela. Meu corpo já estava encharcado também, então só agora percebi o quanto a água estava fria.
— Aruha-kun, tudo bem.
— Mas aquele grampo é importante para você!
— Não tem muito o que fazer agora. Mais importante… — Ioka disse e olhou para o próprio corpo.
Fiz o mesmo, apenas para ver algo que não deveria estar vendo. Por isso, desviei o olhar freneticamente. Estávamos os dois em um estado horrível. Encharcados até os ossos, sujos do rio e do chão. Felizmente, nossos celulares são à prova d'água, então essa foi a única vantagem.
— Bem, minha casa é perto, então...
— Eh?
Se andássemos assim, com certeza chamaríamos atenção. Talvez até fôssemos denunciados à polícia. O fato da casa dela ser perto era ideal.
— Mas quero que você me prometa uma coisa.
— Prometer?
— Por favor, não fale nada.
Fiquei confuso com a escolha de palavras dela, mas como ela se levantou e começou a andar, então, tive que segui-la. Faria sentido se ela me dissesse para não fazer nada. Afinal, ela está convidando um garoto para entrar em sua casa. Naturalmente, ela seria cautelosa.
Então, por que “não diga nada” ao invés disso?
Mas minhas roupas molhadas grudavam no meu corpo, inibindo minha capacidade total de pensar naquele momento. No caminho, as gotas de água caíam pelo meu corpo e me deixavam, assim como meus pensamentos.
*
— É aqui.
Após uma caminhada difícil de 5 minutos, chegamos a um apartamento pomposo. A entrada parecia o saguão de um hotel luxuoso. Ioka destrancou a porta da frente com sua chave e entrou. Eu sei que a situação pode ser o que não parece, mas ainda assim estava nervoso. O motivo pelo qual meu corpo tremia não era porque eu estava sentindo frio. Afinal, esta é a primeira vez que visito a casa de uma garota.
Isso sem mencionar que é logo a casa da Ioka… Mas estamos lidando com uma emergência aqui.
Eu não deveria pensar em nada desnecessário, pegar uma toalha na entrada e voltar para casa o mais rápido possível. Ela também me disse para não dizer nada e já era bem tarde. Entramos em um dos dois elevadores, enquanto ela apertava o botão para nos levar ao 10º andar. A cabine acelerou e eu senti meu próprio peso. Enquanto isso, Ioka parecia perdida em pensamentos, apenas olhando para os números no topo. Gotas de água caíam de seus longos cabelos em um ritmo constante. Um número 10 laranja se iluminou, então saímos do elevador no andar silencioso e paramos em frente ao apartamento número 1011. Ela colocou a chave e destrancou a porta.
— Entre.
— O-Obrigado pelo convite — entrei, enquanto as luzes automáticas iluminavam o corredor — Uau…
A cena à minha frente me deixou sem fôlego. Como era de se esperar, era um interior elegante, digno de uma modelo que pretendia participar de um desfile de moda, exceto que não era bem assim. O que me recebeu foi algo grande e branco, com a parte superior amarrada. De certa forma, era algo muito familiar.
Sim, um saco de lixo…
E eles praticamente enchiam todo o corredor que levava à sala de estar. Eu estava prestes a dizer algo quando Ioka me lançou um olhar severo.
— De-Desculpe, não falar nada… lembrei.
— Espere aqui um momento — ela disse e tirou os sapatos.
Ela caminhou pelo corredor, enquanto seus pés molhados criavam respingos a cada passo. Indo e voltando algumas vezes, eu a observei o tempo todo. Depois de um tempo, ela abriu a porta no fundo do corredor, apontando para dentro.
— Por enquanto, vá tomar um banho.
— O quê?!
— Tudo bem. Meu banheiro está limpo. Eu até queria tomar um depois de voltar, então programei um horário para mantê-lo aquecido.
— N-Não é esse o problema aqui, pra você tá bom?
— Você não pode ficar encharcado assim, certo? Eu vou tomar depois de você.
— Sim, mas... Hã?
— Aff, mente poluída… Eu vou tomar depois que você sair, é claro.
— Mais uma vez, eu não estava me referindo a...
— Já deu! Tire os sapatos! Eu limpo o corredor depois!
Eu tinha muito a dizer sobre isso, mas também não tinha energia para continuar discutindo, então decidi obedecer às exigências dela. Consegui tirar os sapatos e caminhei pelo corredor com minhas meias encharcadas. Ela provavelmente queria ter certeza, porque trancou a porta atrás de mim depois de me empurrar para dentro do banheiro. Além da porta de vidro, fui recebido por uma luz quente.
Eu vou mesmo tomar banho aqui?
Dito isso, eu já estava no meio do processo de tirar minha camisa, pensando no que fazer com essas roupas encharcadas, quando a porta de vidro se abriu rapidamente e Ioka apareceu.
— O-O quê?!
— Ah…
— Não desvie o olhar agora, isso só torna tudo mais embaraçoso. E você já não viu tudo quando eu vesti o terno?
No entanto, Ioka se recusou a olhar para mim e apenas enfiou as mãos dentro do quarto.
— Mas é diferente dentro da minha casa… De qualquer forma, vou colocar uma toalha lá. Quanto às roupas, vista isso. Elas são… bem… minhas.
— Tá...
— Você pode colocar todas as suas roupas molhadas na máquina de lavar. Eu vou colocar lavar mais tarde — disse ela e fechou a porta.
Eu podia ouvir sons de passos e barulhos do outro lado da porta, o que me deixava inquieto. Por causa dessa visita repentina, ela não teve muito tempo para limpar. E sem outra opção, comecei a tomar banho. Como meu cabelo estava uma bagunça, relutantemente peguei um pouco do xampu emprestado e lavei meu corpo com o sabonete dela. Depois de me lavar, passei para a banheira, deixando meus ombros afundarem na água acompanhados de um suspiro profundo saindo da minha boca.
O demônio e as chamas… o desejo de Ioka… Rosy e a foto… o desfile de moda…
Havia tantas coisas em que eu precisava quebrar a cabeça, mas parecia que tudo evaporava junto com o vapor que subia da água. Pelo menos agora eu entendia por que Ioka não me deixava ir à casa dela. E por que ela estava praticando seu desfile no telhado da escola, mas não era nisso que eu precisava pensar.
É tudo sobre Ioka e o demônio.
As chamas estavam tentando realizar o desejo dela. Em outras palavras, o aparecimento das chamas aproxima o demônio de seu objetivo. O demônio, ou melhor… Ioka, mostrou clara hostilidade em relação a Rosy, que tentou atrapalhar seu caminho e impedir que ela chegasse ao seu objetivo. Ela mesma não sabe... ou não aceita seu desejo, mas parecia que eu estava começando a descobrir a identidade do desejo. O que ela realmente quer é...
— Aruha-kun.
— Wah!
Ioka de repente me chamou, tirando-me dos meus pensamentos. Através da porta de vidro colorido, eu podia ver vagamente sua silhueta.
— Você está bem? Não ouço você dizer nada há um tempo...
— S-Sim. Não me afoguei nem nada.
— Sério? Que bom...
Esperei que ela saísse completamente do vestiário antes de sair do banho. Limpei meu corpo fumegante com a toalha preparada para mim e olhei ao redor. Eu esperava encontrar um secador de cabelo por perto, mas não queria mexer nas coisas dela, então apenas usei a toalha com um pouco mais de força. Meu cabelo não era muito comprido, então não foi grande coisa. As roupas que me deram eram para o verão, consistindo em uma camiseta e calças curtas. Fiquei sem palavras quando vi como aquelas calças eram curtas, mas fiquei ainda mais surpreso quando vi que por baixo delas havia cuecas boxer…
Cuecas boxer femininas, ainda por cima. Quero dizer... Sim, minha roupa íntima também está molhada e não posso usar minha roupa íntima suja depois do banho, mas isso é...
Tomei uma decisão e vesti as roupas que me foram preparadas. Esperei um momento antes de entrar na sala de estar, mas não ouvi nenhum som vindo de dentro. Dito isso, ainda assim bati uma vez. Ioka imediatamente apareceu e me chamou para entrar com uma expressão pensativa. Ela também havia trocado de roupa, provavelmente se secando com uma toalha, que ainda estava em sua cabeça. Não foi exatamente chocante, mas nós estávamos usando praticamente a mesma roupa, no entanto, a camiseta era grande demais para ela, revelando um ombro, pois estava inclinada para o lado. Não só isso, mas a área abaixo de suas coxas até os dedos dos pés era tão brilhante que eu tive que desviar o olhar.
— Bem, pode não estar muito arrumado, mas a cama está livre, então fique à vontade para usá-la.
Ela aparentemente não percebeu meus olhares desconfiados, pois disse isso com um tom de desculpas. A sala estava no mesmo estado que o corredor, com sacos de lixo espalhados por toda parte. No entanto, ela liberou algum espaço na área ao redor da cama.
— Há algum problema?
— Não, nada...
Eu queria dizer muitas coisas, mas decidi engolir meu comentário.
— Vou tomar banho agora.
Eu assenti e me sentei na cama. Ainda assim, pensar que era ali que ela dormia todas as noites me deixava inquieto. Ouvi os sons fracos do chuveiro enquanto dava uma olhada ao redor. O interior do quarto estava bastante bagunçado, com lixo por toda parte. Os sacos transparentes me permitiam ver todos os tipos de plástico dentro deles. Devia ser comida que ela comprou na loja de conveniência. No canto do quarto, vi uma caixa de papelão com letras azuis escritas nela. Se fosse da época em que ela se mudou para cá, então devia estar ali há mais de um ano. Verifiquei a cozinha, onde a pia estava cheia de pratos sujos, no entanto, a área ao redor do fogão parecia muito limpa, o que me levou a supor que ela não cozinhava muito. A única vantagem era que não havia comida podre ou mau cheiro por perto.
Depois de esperar um pouco, senti vontade de ir ao banheiro, no entanto, não me parecia certo perguntar a ela onde ficava enquanto ela tomava banho. Saindo para o corredor, abri uma das portas que estavam fechadas e dei uma olhada... e vi. Uma parede de roupas à minha frente. Só que esse quarto era completamente diferente. Dentro de uma caixa transparente, vi roupas cuidadosamente guardadas, também enchendo prateleiras com cabides, como se eu estivesse olhando em uma loja de roupas. Tantos sapatos que eu nunca tinha visto estavam nas prateleiras também.
Então, percebi. Tudo nesta casa, ela sacrificou por causa de suas roupas. É quem ela é. Então, nesse sentido, esta é realmente a casa de Ioka.
Se é assim, o que eu posso fazer por ela?
Eu me virei, tomei uma decisão e peguei o saco de lixo mais próximo.
*
— Desculpe pela espera... Hã?
Ioka voltou do banho, olhou ao redor do quarto e congelou.
— Eu fui em frente e limpei um pouco.
— Mas, Aruha-kun, você não precisava...
— Tudo bem. Você já colocou a maior parte do lixo nos sacos. Depois de jogá-los fora, lavei a louça. Não joguei fora nada que parecesse importante. Usei a chave reserva da entrada.
— N-Não foi isso que eu quis dizer…
A maior parte do conteúdo dos sacos era lixo plástico. Felizmente, o depósito de lixo aqui no apartamento ficava aberto 24 horas por dia, 7 dias por semana. Quanto aos pratos, ela usava principalmente talheres ou canecas, então não havia nada muito difícil de limpar. Foi feito muito mais rápido do que parecia.
— Como eu limpei sem você me pedir, você não vai reclamar, certo?
— Você é um maluco, Aruha-kun — Ioka fez beicinho.
Vendo isso, eu dei um sorriso.
— Você não pode pelo menos me chamar de atencioso?
— Você está certo. Desculpe e obrigada — ela disse, curvando-se relutantemente.
— A propósito, você tem um aspirador?
— Hmm... Provavelmente.
— Tão ruim assim, hein?
Felizmente, o aspirador que ela tirou do fundo do apartamento ainda estava funcionando, então limpei a poeira e tudo o que havia aparecido debaixo dos sacos de lixo. Com isso, o apartamento finalmente parecia habitável novamente. Ioka me observava fazer isso enquanto mordia o lábio.
Depois de guardar o aspirador, senti o cansaço me dominar. Deixei escapar um suspiro fraco e sentei-me na cama.
— Eu moro sozinho, então entendo que pode ser um pouco chato.
Isso deve ter sido muito embaraçoso para ela, porque seu rosto estava vermelho como uma beterraba. É claro que eu sabia que não me ofereci para limpar só porque era uma pessoa de bom coração. Em vez disso...
— Desculpe pelo seu grampo de cabelo.
— Você ainda estava preocupado com isso?
Ela me lançou um olhar surpreso e perplexo enquanto se sentava ao meu lado na cama. Então, sua boca relaxou em um sorriso.
— Aruha-kun, venha cá — disse ela, batendo com a mão no espaço ao lado dela.
Eu obedeci à sua ordem e me sentei no local indicado. Ela me olhou diretamente nos olhos.
— Por favor, não faça essa cara. Não é sua culpa, Aruha-kun. O incêndio começou por minha causa. Eu sou uma pessoa má. Isso não teria acontecido se o demônio não tivesse me possuído.
— Não, você está errada. É tudo por minha causa. Se eu tivesse exorcizado o demônio mais cedo, você ainda teria seu grampo de cabelo... E Rosy não teria tirado aquela foto nossa.
Eu estava com a mão no colo quando, de repente, senti algo quente que fez as palavras ficarem presas na minha garganta. Ioka havia colocado a mão sobre a minha. Olhando para mim, ela baixou o olhar, mostrando um sorriso magoado.
— Tudo bem. Na verdade, isso pode ter sido o destino.
— O que você quer dizer?
Ela estreitou os olhos e começou a me contar sobre ela.
— Nasci e fui criada em Akita. Eu era uma garota normal, como qualquer outra... eu acho. Nunca fui particularmente confiante e tentava fazer tudo o que meus pais me mandavam. Além de não me preocupar em estar na moda, nunca me importei muito com minha aparência, pois via o mundo através das franjas do meu cabelo. Meus pais só se importavam com as notas das provas da escola. Então, cuidar da minha aparência ou me preocupar com roupas era um desperdício aos olhos deles e, em último caso, aos meus. Esperavam que eu tirasse boas notas nos exames e, se eu fosse mal, me repreendiam. Assim, comer tornou-se minha única maneira de lidar com o estresse, mas quando entrei no ensino fundamental maior, havia tantas meninas usando roupas elegantes e se arrumando. Todas ao meu redor pareciam brilhar... mas eu sempre achei que isso não tinha nada a ver comigo. Então, fomos de férias em família para Tóquio, onde encontrei a ainda pequena loja NarraTale. Não sei explicar muito bem, mas... percebi que havia algo diferente nela. Mas mesmo que eu pudesse comprar roupas, não saberia o que escolher, então comprei secretamente um grampo de cabelo. Esse grampo é o mesmo que usei hoje. Eu não sabia de nada naquela época e ainda não sei que tipo de história o grampo de cabelo representava, mas ele parecia brilhar e se tornou meu tesouro. No dia seguinte, coloquei ele secretamente no cabelo depois de sair de casa e uma das minhas amigas até me elogiou. Ela disse que eu parecia uma modelo. Tenho certeza de que ela só estava sendo gentil, mas para mim foi como se o mundo inteiro tivesse mudado. Por isso fiquei toda animada, com grandes esperanças, e me inscrevi para um teste de modelo. Até as meninas mais bonitas da minha turma se inscreveram. Eu estava no lugar errado. Todas eram estrelas brilhantes, enquanto eu era uma pedrinha à beira da estrada. No final, não fui ao teste e fui direto para casa. Até hoje, não consigo descrever o que senti naquela época. Eu estava frustrada, triste, amargurada, com inveja e tudo isso junto. No entanto, havia uma coisa da qual eu tinha certeza naquela época: eu queria vencer. Então, a partir daquele momento, trabalhei para mudar. Mudei minha dieta, comecei a me exercitar, comecei a praticar judô, aprendi tudo sobre moda... Basicamente, o que faço hoje. Naturalmente, isso fez com que minhas notas caíssem. Minha mãe e meu pai estavam sempre zangados comigo. Eles me chamavam de delinquente. Engraçado, não é? Eu nunca fiz nada de ruim. Mas estava feliz por ter mudado tanto e comecei a gostar muito mais de mim mesma. Estava encantada com tudo isso. E foi assim que, um ano depois, me inscrevi para a mesma audição. Eu não era mais apenas uma pedrinha. Preparei meu corpo e minha alma para a luta. Depois de passar na audição, comecei a trabalhar como modelo, mas não tem muito o que fazer em num interior como aquele. Descobri que muitas crianças foram treinadas para se tornarem modelos por vontade dos pais, praticamente desde o momento em que nasceram. Eu simplesmente cheguei tarde demais, só que a partir daquele momento, meu objetivo estava definido. Se eu não tivesse comprado aquele grampo de cabelo, acho que nunca teria desejado realmente me tornar alguém especial. Sendo assim, decidi que me tornaria modelo da NarraTale e até esse dia chegar, eu não iria perder para ninguém. Quando contei aos meus pais sobre meu sonho de me tornar modelo, eles ficaram loucos. Para convencê-los, eu precisava entrar em uma escola de alto nível. Então, depois de estudar como se minha vida dependesse disso, consegui entrar na Academia Sakamaki. Eles ainda são contra meu trabalho como modelo, mas pelo menos me enviam dinheiro regularmente. Depois que entrei para a agência, passei a trabalhar ainda mais do que antes. O Shimizu pode ser um pouco preocupada, mas é uma pessoa gentil e foi graças ao seu apoio que consegui aparecer no lookbook da NarraTale. Pensei que tinha conseguido realizar o meu sonho e quando descobri a Total Girls Collection da NarraTale... Bem, você já sabe o resto.
Ouvi sua história em silêncio. Muitas emoções começaram a surgir dentro de mim, mas tive que engolir tudo. Não tinha ideia dos sentimentos que ela tinha quando se esforçou tanto para aparecer no programa. Também não sabia o valor que aquele grampo de cabelo tinha para ela.
— Era... algo muito importante para você, certo?
— Tudo bem. Como eu disse, era apenas um amuleto. Não preciso mais dele.
— Mas isso não pode ser verdade!
— É verdade. Porque agora…
Ela virou o corpo para me encarar, apertando minha mão com força, no entanto, ela desviou o olhar novamente, como se tivesse recuperado os sentidos, e abriu levemente a boca.
— Eu tenho você comigo, Aruha-kun.
Eu estava sempre tentando encontrar algo que pudesse fazer por ela. No final, não consigo nem exorcizar aquele demônio. Não só isso, como estou a arrastá-la para baixo. Fiz com que ela tropeçasse, como se fosse uma pedra. Mas, pelo menos... talvez me torne o seu amuleto da sorte.
— Estou um pouco cansada. Devíamos dormir — disse Ioka, enquanto o seu corpo caía na cama.
— Nós? Espera, eu também?
Ela levantou um pouco a cabeça e olhou para mim. O seu cabelo comprido espalhava-se pelos lençóis.
— Não temos outra escolha. Suas roupas ainda estão secando, lembra?
— Ah...
— Elas estarão prontas pela manhã, além de que você não pode andar por aí vestindo essas roupas.
— Mas você deve ter outra coisa para eu vestir, certo? Mesmo que seja para mulheres, eu-
— Não. Não vou te emprestar nada.
— Ioka, por que você está...
— Estou pedindo para você ficar comigo...
Ela abraçou os joelhos enquanto estava deitada na cama, fazendo beicinho para mim.
— É tão ruim assim eu... não querer ficar sozinha agora?
Aquele gesto, aquelas palavras, pareciam capazes de partir meu coração. Todos os tipos de sentimentos começaram a surgir em meu corpo, entrando em conflito uns com os outros.
— Não é, mas... O que eu devo fazer...
— Você estava planejando fazer algo comigo?
— Claro que não! Mas...
— E você não consideraria a possibilidade de que eu pudesse fazer algo?
— O quê?
— Se for preciso, acho que sou mais forte do que você.
— Então vou me esforçar ao máximo e resistir...
— Então você vai resistir?
— Bem, hmm...
Vendo-me gaguejar, Ioka estreitou os olhos como se fosse uma lua crescente.
— Vamos nos preparar para dormir. Tenho uma escova de dentes nova que você pode usar.
Desisti de resistir e segui Ioka até o banheiro. Ela passou um creme e começou a escovar os dentes. Observá-la ao meu lado pelo espelho foi como entrar em um mundo diferente. Finalmente, ela terminou de preparar tudo e foi para a cama.
— Então, onde eu devo dormir?
— Aqui mesmo, é claro — disse ela, batendo com a mão no espaço ao lado dela.
— Eu posso dormir no chão.
— É muito duro, você não consegue dormir aí. Parece que eu tenho um futon disponível?
Eu não podia discutir. Sem sofá, também não podia usar isso. Como tinha acabado de limpar o quarto, sabia muito bem disso.
— Venha aqui. Agora mesmo.
— Ugh...
Hesitei, mas mesmo assim fui até ela. Meu cansaço venceu minha capacidade de raciocinar. Então, deitei-me ao lado dela. O corpo já estava quente por causa da temperatura corporal dela e como a cama não era muito espaçosa, ocupei uma boa parte dela. O rosto dela, com os olhos baixos, estava bem na minha frente. Ela estendeu as mãos para pegar o cobertor, procurando o controle remoto das luzes. Com um leve BIP, as luzes se apagaram.
— Ok, boa noite.
Ela se virou, mostrando-me as costas. Ficamos assim por um tempo, sem dizer uma palavra, mas…
Não tem como eu dormir assim!
Hesitei em me mover um centímetro sequer, apenas permanecendo na minha posição inicial. A cada respiração, eu sentia o cheiro dela. Aquele momento parecia que poderia durar para sempre, até que ouvi a voz de Ioka.
— Você ainda está acordado?
— Sim.
Reconhecendo minha resposta, ela se virou para me encarar.
— Bem...
— O que há de errado?
— É só que...
— Acho que você está preocupado com a foto, certo? Vamos tentar convencer Rosy amanhã para que ela...
— Não é com isso que estou preocupada. Quero dizer, não é só isso… — ela parecia hesitante com suas palavras e levou um tempo para encontrar sua determinação — Por que você ainda está disposto a ficar comigo, Aruha-kun?
Eu me esforcei para entender o significado por trás dessa pergunta.
— Quero dizer... eu não consegui controlar as minhas chamas, deixei a gente encharcado assim e até minha casa está uma bagunça... Você não acha que seria melhor não se envolver com uma garota possuída como eu?
— Isso é...
Todo tipo de resposta flutuava na minha cabeça, enquanto eu tinha o cabelo dela preenchendo minha visão. Tudo sobre Ioka estava ao meu alcance, bastava esticar a mão. Fiquei surpreso ao descobrir tais desejos habitando dentro de mim. Eles possuíam a força para explodir a qualquer momento e pareciam rachaduras se formando por todo o meu corpo.
Quanto mais eu me aproximava dela, mais eu queria ficar ao lado dela. Uma força que eu não conseguia combater me fez me apaixonar ainda mais por ela. Quase como um meteorito caindo, uma estrela cadente. Mas é também por isso que só há uma resposta que eu deveria dar aqui.
— Porque sou seu exorcista, afinal.
— Entendo… — ela respondeu após um breve silêncio.
Não consegui olhar diretamente para ela, então me virei. Eu já tinha percebido qual era o desejo dela. Como exorcista, eu deveria contar a ela sobre esse desejo, confirmando se era correto ou não. O diabo está tentando realizar um desejo que ela nem mesmo conhece. É um desejo sincero, mas impossível de ser concedido. Sai-san chamou aquele jovem e acho que, tanto Ioka quanto eu, fomos enganados pelo som inocente disso. Mas o demônio não iria cumprir um desejo bonito. É um desejo desagradável, insuportável e grotesco no fundo, mas, eu não consegui dizer isso a Ioka.
Porque eu não quero magoá-la enquanto ela já está sofrendo? Isso é parte do motivo, mas a outra razão... é porque sou egoísta.
Sei que tenho que exorcizar esse demônio eventualmente, mas se eu fizer isso... deixarei de ser um exorcista. Voltarei a ser apenas uma pedra à beira da estrada. Então, pelo menos por este momento, gostaria de estar aqui... É isso que desejo. Todos os sentimentos, desejos e vontades que carrego, eu os selava dentro do meu coração enquanto cuidava das rachaduras que apareciam no meu corpo. Eu estava tenso o tempo todo, mas de repente, senti uma sensação suave se agarrando às minhas costas. No calor do momento, quase pulei da cama, mas consegui me conter por pouco. Virando-me lentamente, vi que Ioka estava agarrada a mim enquanto dormia profundamente. Além disso, ela havia puxado seu próprio travesseiro para mais perto de mim.
Eu queria reclamar e gritar, mas esse é o meu castigo.
Pelo menos era o que eu dizia a mim mesmo. Eu vou apenas ficar aqui. Existir aqui. Não posso ser mais do que isso. Afinal, uma pedrinha como eu, atraída pela força gravitacional de uma estrela, vai simplesmente queimar naturalmente.
*
Quando acordei, levei alguns bons momentos para entender onde estava e quando vi Ioka bem ao meu lado, gritei baixinho. Ela ainda estava dormindo. Sua postura durante o sono era bastante horrível, pois a parte inferior do corpo quase havia caído da cama.
— Mhmmm…
Ela deve ter percebido que eu estava acordado, pois franziu as sobrancelhas enquanto gemia levemente. Mantendo essa expressão, ela inclinou a cabeça e abriu os olhos lentamente.
— Bom dia, Aruha-kun… — ela disse, mas seus olhos pareciam que iriam fechar a qualquer momento.
— Alguém está com sono ainda.
— Estou bem… Dormi muito bem…
— Você tem algum trabalho hoje?
— Não… Não, acho que não…
Eu nunca tinha visto alguém lutando tanto para acordar que tive que rir. Como hoje era domingo, não tínhamos aula, e se ela não tinha nenhum trabalho, então acho que não precisávamos acordar tão cedo.
— Então vá dormir mais um pouco, tá?
— Tá bom… — ela respondeu de maneira fofa e então baixou a cabeça novamente.
Acho que ela está muito exausta ou talvez só tenha dificuldade para acordar...
Sinto que é a segunda opção e, ainda assim, ela realmente sai para correr todas as manhãs. Fui pegar minhas roupas, que estavam perfeitamente secas. Depois de vesti-las, finalmente senti que tinha voltado a ser eu mesmo. Entrei na cozinha para dar uma olhada na geladeira, mas, como era de se esperar, não havia nada que valesse a pena usar.
— Eu deveria sair para comprar alguma coisa.
Peguei a chave reserva da porta da frente e saí de casa. O sol da manhã me banhava neste lugar ao qual eu não estava acostumado, fazendo-me sentir como se tivesse me transformado em uma pessoa completamente diferente. Verificando o mapa no meu celular, vi um supermercado nas proximidades. Por enquanto, fui até lá.
Não era tão cedo assim, mas quase não encontrei ninguém. Todos os outros deviam estar dormindo ou assistindo TV para planejar o dia. Meus pensamentos vagavam sobre essas coisas quando passei por um parque. Lá, vi um rosto familiar sentado no balanço. Aquela presença que ela exalava era algo que eu não confundiria.
— Espere... Rosy?!
— Eca, é o Sr. Namorado — ela me cumprimentou com uma expressão de nojo.
— Pelo menos lembre-se do meu nome. É Arihara Aruha. Mas, mais importante, o que você está fazendo aqui?
— Essa frase é da Rosy. Você ficou na casa da Ioka? Então você é o namorado dela, né?
Eu estava desconfiado dela, mas ela parecia que nada mais importava.
— Ah, sim, a foto! É melhor você apagar isso agora mesmo! E não ouse enviar para ninguém!
— Aff… — Rosy bufou baixinho e então desviou o olhar — Sobre isso... Shiito ficou muito irritado comigo.
— Bem, claro. O que você esperava?
Ao ouvir isso, fiquei aliviado. Acho que Shimizu já cuidou de tudo.
— Então, vim me desculpar. Disse que não poderia voltar até fazer isso — Rosy fez beicinho enquanto abaixava a cabeça.
Por um momento, duvidei dos meus olhos. Acho que se pode chamar isso de arrependimento.
— Sim, faça isso. Vou ligar para a Ioka.
— Não! A Ioka não está jogando limpo! Eu não fiz nada de errado!
Não importa, ela ainda não mudou.
— O que há de injusto em vencer com puro esforço e trabalho árduo?
— Ahhh, caramba. Você está bravo porque eu estou falando mal da sua garota, certo? Inacreditável. Eu sei como isso se chama. É favoritismo, certo? Ninguém vai ficar do lado da Rosy, porque ela está sozinha. Mesmo assim... Eu deveria ter sido escolhida.
Algo em seu discurso confuso me chamou a atenção.
— O que você quer dizer?
— Eu sei por que Ioka foi escolhida.
— Então fale logo.
— Porque Ioka é uma boneca.
— Uma... boneca?
— No final, restavam Rosy e Ioka. Mas Teruta escolheu Ioka. Tudo porque ela é uma boneca que pode ser encontrada em qualquer lugar! — continuou Rosy — Isso já aconteceu antes. Rosy foi expulsa porque era muito alta, muito peculiar ou porque não se encaixava com as outras. Isso não é justo. Eu não posso fazer nada a respeito, não importa o quanto me esforce. O que eu deveria fazer? O que eu poderia ter feito?
Eu realmente não entendo muito bem o mundo da moda. Talvez isso fosse algo comum. Talvez fosse assim que o mundo funcionasse. Talvez estivesse realmente fora do controle dela. É um trabalho totalmente focado na aparência, acima de tudo. Ao selecionar atores para um filme, você tende a escolher aqueles que se encaixam no personagem e no papel. E eu poderia ter dito a mesma coisa a ela.
Mas eu… entendo como ela se sente…
Não podia ignorar isso, porque conheço alguém que trabalhou incrivelmente duro para chegar ao mesmo lugar que ela. Se os papéis fossem invertidos... se Ioka tivesse sido rejeitada por esses mesmos motivos... acho que não poderia simplesmente ignorar isso como “esperado”.
— A minha maneira de andar é definitivamente melhor do que a dela. Ela consegue chamar a atenção de todos. Você também viu isso, não viu? Mas a Ioka... Ela é apenas uma manequim ambulante!
Tentei argumentar, mas não consegui. A razão para isso era simples... Porque, no fundo, eu já tinha aceitado o fato de que a Rosy era muito mais impressionante do que a Ioka.
— Eu não fiz nada de errado. Eu apenas tentei recuperar o que deveria ser meu. Então, por que estou sendo repreendida? Isso não é justo! Por que isso está acontecendo?! Diga!
Ela agarrou meus ombros e me sacudiu para a esquerda e para a direita. Eu estava começando a ficar tonto, mas ainda assim abri a boca.
— E daí? Tirar aquela foto, tentar divulgá-la... Isso não lhe dá motivo para magoar os outros!
— Mas... Mas...
— Ioka trabalhou mais do que qualquer outra pessoa. Eu vi isso com meus próprios olhos. Ela praticou, aprendeu tudo o que podia sobre roupas... Não sei se tudo é justo ou não... Mas, no mínimo, fazer algo assim é errado!
A maneira como ela me sacudia ficou cada vez mais fraca.
— Waaaaaaaaaaaaaaah!
Por fim, ela gritou e começou a chorar. Com isso, eu me lembrei. Não importa o quanto ela seja alta, o quanto pareça madura e o quanto seja talentosa como modelo... No fim das contas, ela ainda está no ensino fundamental. Eu não disse nada e apenas esfreguei gentilmente suas costas.
Eu não acho que ela esteja certa em fazer isso, mas então, é certo que Ioka tenha sido escolhida? É errado Rosy sentir essa tristeza e raiva? Ioka disse que os resultados são tudo o que importa... esse é realmente o resultado certo?
— Isso é verdade?
Com essa voz fria surgindo do nada, Rosy e eu nos viramos ao mesmo tempo. Eu queria estar errado, mas a visão que me recebeu traiu minhas esperanças. Lá estava a Ioka.
— Ioka, por que você está...
— Quando acordei, você não estava em lugar nenhum. Fui procurar por você, mas... sobre o que vocês estavam conversando?
— Rosy não está mentindo. Depois da audição, ela foi falar com... hmm, agredir o estilista! Ela perguntou a ele!
Então Ioka deve ter ouvido tudo. Enquanto isso, Rosy agarrou minha manga com força e, ainda assim, eu não consegui empurrá-la. Ioka deu um passo após o outro, aproximando-se de mim.
— Aruha-kun, por que você está com Rosy? O que você estava fazendo?
— Eu simplesmente a encontrei por acaso e...
— Ele ouviu o que eu tinha a dizer! Ele me animou! Até esfregou as minhas costas!
Seguido por essas palavras, ouviu-se um forte estalo. Ioka bateu na mão de Rosy para que ela me soltasse.
— Ai! Por que você fez isso?!
— Fique longe de Aruha-kun.
— Mas ele não pertence a você! Vocês nem namoram!
— Como você sabe disso?!
— Porque ele simplesmente disse isso!
— Ioka! Isso... isso foi longe demais.
Em minha mente, as dúvidas que eu sentia começaram a ficar mais fortes, à medida que eu me certificava do desejo dela. Fingi que não estava olhando para aquilo. A voz aguda de Ioka se agarrou a mim como presas.
— Você não negou, Aruha-kun. Você também acha que eu não fui escolhida por causa da minha habilidade?
— Eu nunca disse nada parecido.
— Mentiroso.
— Eu não estou mentindo!
E, mesmo depois de tranquilizá-la, sua voz soava frágil, como se pudesse se quebrar a qualquer momento.
— Aruha-kun, na verdade eu sabia disso o tempo todo. As fotos na NarraTale... Você achou que Rosy era melhor, certo?
— Isso é...
— Foi a mesma coisa no teste. Você disse que eu ainda teria outra chance... então você deve ter pensado que Rosy foi aceita em vez de mim, certo?!
— Não, eu não estava...
Mas não consegui terminar minhas palavras, porque todo o som foi apagado. A luz quase cegou meus olhos, enquanto meu corpo era atingido por uma onda de ar quente.
— Cuidado!
Eu me coloquei na frente de Rosy para protegê-la, no entanto, as chamas que surgiram da mão de Ioka me jogaram para longe.
— Guh!
Meu corpo bateu com força na base do balanço, enquanto eu caía na areia. Uma sensação áspera invadiu minha boca.
— O que está acontecendo?! É igual a ontem! O que está acontecendo aqui?!
Rosy estava perplexa, enquanto Ioka se aproximava dela. Seu corpo continuava a queimar.
— Ioka! Acalme-se! Eu não tenho nada.
Procurei nos meus bolsos, mas não encontrei nada que pudesse dar a ela para comer. Era compreensível, já que eu tinha saído do apartamento para comprar algo.
— Ca-Calor! Socorro!
O braço em chamas de Ioka alcançou o pescoço de Rosy. Ela possuía uma força inimaginável, conseguindo levantar a garota com uma mão, apesar da diferença de altura. Uma voz que eu nunca tinha ouvido dela escapou da boca de Rosy.
— Eu... gh...
— Rosy. Eu nunca consegui suportar você. Você sempre se achou especial, no entanto, você fala sobre injustiça. Não me faça rir. Seu cabelo loiro, seus olhos azuis, sua estatura alta, sua individualidade e sua confiança... Você conquistou tudo isso com esforço?
Algo não estava certo. Até então, uma Ioka possuída apenas soltava gemidos. Como se tivesse perdido a si mesma, mas não agora. Ela estava consciente, falando com palavras coerentes.
— Eu sou diferente. Vou conquistar tudo... com esforço e trabalho duro!
E então percebi... As chamas não tinham sombra. E era por isso que ela também não deveria ter. No entanto, ela estava lá. E tinha uma forma que não deveria ser possível — sua sombra tinha a forma de um lagarto. Sem dúvida, seus sintomas pioraram, e a uma velocidade alarmante.
— Pare com isso, Ioka! — grite — Ela... Ela não fez nada de errado! Mas, nesse ritmo, você vai...
Ioka segurou Rosy enquanto olhava para mim. Apesar de seu corpo inteiro estar em chamas, seus olhos estavam frios como gelo.
— Eeek! — gritou Rosy.
As chamas estavam se espalhando para ela.
— Desculpe, Ioka. Tudo isso é minha culpa. Eu deveria ter exorcizado o demônio ontem. Mas eu simplesmente fugi. Fugi do demônio... Não, de você.
Ou talvez da responsabilidade de enfrentar a realidade.
— O que você está dizendo?
— Ioka... Eu já percebi qual é o seu desejo.
Fechei os olhos e respirei fundo. Eu tinha apenas alguns segundos. Naturalmente, não havia como me preparar para o que eu tinha que fazer. Mas eu precisava acabar com tudo. Aqui e agora.
— Esta é a sexta vez que essas chamas aparecem. A primeira vez foi quando nos encontramos no telhado. A segunda vez foi quando você me forçou a manter a primeira vez em segredo. A terceira vez foi durante sua discussão com Rosy. A quarta vez foi durante o teste, com a quinta vez levando à foto. A sexta vez... é agora. Há um denominador comum entre todas elas. Todas as vezes, você tinha alguém na sua frente e essa pessoa estava tentando atrapalhar você.
A expressão de Ioka não mudou. Eu apenas acreditei que ela estava me ouvindo e continuei.
— Você queria aparecer no programa da NarraTale e foi por isso que trabalhou tanto, mas todo esse esforço seria em vão se alguém completamente alheio ao assunto estragasse tudo para você. Tudo acabaria em nada e você não permitiria que isso acontecesse. É por isso que...
Eu tinha que aceitar. Os dias que passei com Ioka como seu exorcista foram gratificantes, mas eu tinha que acabar com isso agora. Se tudo começou comigo me tornando um exorcista, então eu tinha que terminar tudo renunciando ao meu dever. O que começou com o demônio... tem que terminar junto com ele.
— Você queria queimar tudo que estivesse no seu caminho. Para que você saísse vitoriosa.
O aperto de Ioka em Rosy diminuiu e ela caiu no chão, tossindo violentamente.
— Aruha-kun... Você está falando sério?
E então, os olhos ardentes de Ioka se voltaram para mim.
— Você está dizendo que... Para meu próprio bem, para sair vitoriosa, para ser bem-sucedida... eu desejava ferir, queimar e matar outras pessoas?
— Não, não é isso. Você era tão séria sobre o seu sonho que...
— Então é exatamente como eu disse! — ela gritou — Aposto... que você deve ter me visto como esse tipo de pessoa, certo? Desde... desde o início!
Chamas começaram a sair de sua boca.
— Você disse que iria exorcizar o demônio. Você estava preocupado comigo. Você me ouviu. Isso me deixou feliz, pensando que você realmente me entendia. Mesmo ontem à noite, eu dormi tão bem... tudo porque você estava ao meu lado!
O que saía de seus olhos não eram lágrimas... Mas pequenas chamas, deixando marcas enquanto escorriam por seu rosto.
— Mas você só estava comigo porque é um exorcista. Se houvesse alguém com mais dor do que eu, você ajudaria essa pessoa. Se houvesse alguém mais talentosa do que eu, você ficaria ao lado dessa pessoa. Eu entendo... Eu realmente entendo. Ninguém realmente olha para mim. Eu não sou especial. Porque no final das contas... sou apenas uma boneca que você pode encontrar em qualquer lugar!
— Isso não é verdade!
— Então por que você está do lado da Rosy?! Por que você está me jogando fora?!
— Isso não é um problema de amigo ou inimigo!
— Então não me impeça! Porque quando a Rosy se for, meu sonho será realizado!
No momento em que ela terminou suas palavras, ela suspirou. Com isso, ela havia admitido seu desejo.
Ela revelou... seu desejo.
— Ioka. Se você vai machucar outras pessoas... então não posso ficar ao seu lado — eu disse e desviei o olhar dela — Eu descobri seu desejo. Com isso, o demônio pode ser exorcizado. Vamos acabar com isso.
— Aruha-kun, o que você está...
Estendi minha mão para Rosy, que se levantou com uma expressão perplexa. Então, fiz com que ela olhasse para Ioka.
— Escute, Ioka... Eu vim me desculpar — disse ela.
— De que adianta isso agora...
— Eu sempre achei que você não estava jogando limpo. Você se encaixou perfeitamente no seu trabalho, fez amigos... Apesar de ser uma garota normal do Japão. Como isso poderia ser justo? Eu sou diferente de todas. Eu só tenho meu trabalho como modelo e mesmo assim você roubou isso de mim também... Então eu achei que também tinha o direito de ser injusta… — ela tentou conter as lágrimas enquanto continuava — Mas estava errada. Você trabalhou tão duro quanto eu... E não há nada de injusto nisso. Por favor, me perdoe por ter sido tão horrível com você. Eu não vou mais atrapalhar você. Você foi escolhida para o desfile... então você deve ser a única a participar.
Os olhos delas se encontraram e, com um leve estalo, as chamas desapareceram em um instante.
— Ah... Não... As chamas estão... Mas por que… — Ioka caiu no chão — Eu... Eu desejei algo assim!?
Ela foi forçada a perceber... que o que eu disse era verdade, afinal.
— Demônio. Não sei se você pode me ouvir, mas com isso, ninguém mais vai atrapalhar o caminho dela. Sua “ajuda”... não é mais necessária.
Assim como a minha, é claro.
— Aruha-kun! Espere, eu...
Eu não me virei e simplesmente comecei a andar com Rosy.
— Até mais, Ioka.
Foi tudo o que consegui dizer. Acho que nunca mais nos encontraremos. Enquanto ouvia ela chorando atrás de mim, fui embora com Rosy ao meu lado. Eu não queria admitir, mas tinha que aceitar. O desejo de se tornar alguém especial trouxe ciúmes, pânico e desejos distorcidos. E foi isso que o demônio percebeu. Na forma daquelas chamas. Se for assim... talvez a juventude seja pecado e isso pode ser o castigo de Ioka. O demônio desaparecerá, assim como o pecado. Ioka realizará seu desejo... usando sua própria força.
Tudo bem…. Eu não tenho mais motivos para ficar ao lado dela.
Enquanto caminhávamos, meu sapato acabou chutando uma pequena pedra, mas, é claro, fingi que não tinha percebido.
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