CAPÍTULO 9 - Tudo o que o coração deseja

— Desculpe por isso, Rosy, e obrigado.

— Não se preocupe, tá de boa. Só não achei que você fosse realmente aparecer.

No dia do show, fui até a Arena Sakamaki. Depois daquela conversa com Rosy, pensei muito se deveria ir ou não, mas no final acabei indo. Não sabia exatamente o motivo, mas algo me atraía para lá. Tudo deveria ter acabado, mas não desaparecia.

Tudo por causa desse... algo.

Achei que, se assistisse ao desfile da Ioka, poderia finalmente encerrar tudo isso. Acho que era essa a tênue esperança que sentia. O local do Total Girls Collection era muito diferente do que eu imaginava. De todos os desfiles de moda que eu tinha visto, a maioria era realizada em um local envolto em escuridão, com milhares de cadeiras ao redor de uma passarela preta. Parecia quase opressivo andar por lá, no entanto, aqui, parecia um festival.

De pessoas da minha idade até idosos, todos os tipos de pessoas andavam livremente. A luz brilhava em todos os cantos, barulhenta e confusa ao meu redor. Sem mencionar todas as diferentes barracas que me lembravam as feiras. Por causa dessa multidão, ou simplesmente porque eu nunca tinha estado em um lugar como esse, eu nem sabia como entrar.

Se eu soubesse que era algo nesse nível, eu deveria ter ido a um festival de música ou show ao vivo com Miu antes de hoje…

É claro que ter que ligar para Rosy para me mostrar o caminho não era nada além de patético, mas era a única coisa que eu podia fazer.

— Se eu soubesse que você estaria aqui, eu teria mandado alguém para te acompanhar. Às vezes você é tão distante.

— Distante, né?

— Sim.

Por alguma razão, ela ficou irritada comigo.

— E originalmente, isso veio da ideia de ser insensível e fria, então ela também não está errada.

Uma voz grave familiar se destacou do barulho ao nosso redor. Virando-me para a origem daquela voz, cumprimentei um homem bem constituído vestindo um terno.

— Ah, Shimizu. Sinto muito por...

— Há quanto tempo, rapaz.

Ao lado de Rosy, Shimizu me cumprimentou.

— Rosy, é melhor você ter se desculpado com ele também, certo?

— Ah, bem... mais ou menos...

— Rosy — Shimizu-san lançou um olhar mortal para Rosy.

— Eu-eu-eu sinto muito!

— Não, eu realmente não...

Deixando de lado toda a situação com Ioka, ela realmente não tinha motivo para me agradecer.

— Você deveria ser um pouco mais amigável com os outros. Não há nada de errado em ser bem-educada e polida.

— Mas a minha mãe nunca disse nada sobre isso!

— Estou preocupada que, como seu empresário, você esteja causando danos a si mesma completamente alheios ao seu talento real…

Shimizu começou a repreendê-la. Depois que Rosy mostrou que estava genuinamente arrependida, Shimizu a soltou e se virou para mim.

— Eu soube sobre a foto. Rosy está claramente errada, mas você também deve ter cuidado. Acho que você não gostaria de prejudicar a carreira de Ioka. Você é livre para namorar com ela, mas deve fazer isso longe dos olhos das outras pessoas...

— Sim, me desculpe, mas... Hmm...

— O que foi?

— Como está a Ioka?

Shimizu não conseguiu esconder sua surpresa com a minha pergunta.

— Então ela não entrou em contato com você?

— Muita coisa aconteceu, então...

— Hmm… — Shimizu-san colocou uma mão no queixo e fez um gesto de reflexão — Isso explica muita coisa.

— O que você quer dizer?

— Você queria saber como ela está, certo? Bem, ela está absolutamente perfeita. No momento, ela está tão afiada quanto uma lâmina japonesa. Nem eu esperava que ela atingisse tal nível.

— Isso é...

— Imaginei que algo grande deve ter acontecido para provocar essa mudança. E como ela não entrou em contato com você... isso provavelmente está relacionado ao segredo dela. Certo? — eu não consegui responder. Dito isso, Shimizu-san deve ter esperado por isso — Vamos esquecer isso. Não pretendo me intrometer. Ainda mais porque não parece estar indo para uma direção ruim. Agora, eu provavelmente devo ir para a sala de espera. Quer vir também, rapaz?

— Não, acho que não...

Eu ainda não conseguia me convencer a ver Ioka. Agora que o demônio se foi, é melhor eu ficar longe dela. Eu só iria atrapalhar.

— Certo. Se você não está bem com isso... Mas, eu também estou um pouco preocupado com você.

— Comigo?

— Sim. Certifique-se de não ter nenhum arrependimento, rapaz.

Arrependimento…

Esse último aviso que Shimizu-san me deixou doeu profundamente, mas o que eu deveria me arrepender já está no passado.

Não posso mais mudar o presente... ou melhor, não devo.

Ela seguiu seu caminho e agora alcançou seu objetivo lutando de forma justa. Meu único dever é me despedir dela e então voltarei à minha vida normal.

Só isso…

Parecia que eu estava correndo em círculos, perseguindo meus próprios sentimentos, apenas para perceber que algumas horas haviam se passado. Olhando para o meu relógio no pulso, verifiquei a hora.

O show está prestes a começar.

Todas as luzes do salão se apagaram, enquanto o locutor fazia a introdução. O display ao fundo se iluminou com um brilho deslumbrante. Aplausos me atingiram da escuridão ao meu redor.

— Está começando — a voz de Rosy chegou aos meus ouvidos.

Todos os nossos olhos se uniram e se concentraram na passarela.

*

A minha primeira participação em um desfile de moda estava prestes a acontecer. O monitor na sala de espera brilhava com luzes coloridas. À distância, ouvia música e aplausos. A sensação de participar de um evento ao vivo era uma das características do desfile Total Girls Collection.

Normalmente, você não acompanha o ritmo da música, não demonstra nenhuma expressão, apenas exibe as roupas com elegância. Mas esse desfile é exatamente o oposto. A caminhada é como uma dança e todas as modelos sorriem. É por isso que me senti emocionalmente elevada.

Ou melhor, não tive outra escolha a não ser me sentir elevada, afinal, esse sentimento crescente dentro de mim... estou prestes a realizar meu sonho.

Faltavam trinta minutos para a minha vez chegar. Meu cabelo e maquiagem estavam prontos, e eu estava vestindo a roupa para mais tarde enquanto estava nos bastidores. Ouvindo as ordens do ajustador, uma peça de roupa foi adicionada à outra. É claro que eu tive que ficar nua antes disso, mas não podia me preocupar com isso. Um manequim não sente vergonha quando recebe suas novas roupas. É o mesmo conceito aqui.

Neste momento, meu corpo existe apenas para exibir as roupas preparadas para mim. Todos os funcionários presentes estavam trabalhando para esse objetivo.

E estou aqui para o bem maior.

É por isso que me preparei para aprimorar meu ser para este evento. Minha saúde, minha pele, meu jeito de andar... Desde que fui escolhida para este desfile, decidi que viveria apenas para este momento.

Não... Sinto que nasci para chegar a este momento.

Todas as roupas exibidas neste desfile foram feitas à minha imagem. Depois que passei no teste, o Senhor Tezuka me disse:

— Sua história, Ioka Itou, é Pinóquio.

Foi como se eu tivesse sido atingida por um raio. Algo despertou meu interesse, então perguntei a ele sobre o motivo por trás do grampo de cabelo em forma de estrela de anos atrás e qual história ele deveria contar. Ele sorriu surpreso naquele momento e respondeu:

— Pinóquio.

Ele não poderia saber que eu valorizava tanto aquele grampo de cabelo. Ele me viu e decidiu mais uma vez usar o tema Pinóquio. Ele iria usar o mesmo motivo. Eu podia sentir meu corpo inteiro tremendo. Talvez um designer mestre como ele tivesse visto a forma da minha alma, mas havia mais uma coisa que eu precisava perguntar a ele. Perguntei se ele realmente achava que eu era uma boneca que se encontra em qualquer lugar. Ele respondeu com um simples sim, mas continuou dizendo:

— É isso que te torna tão bonita.

Tudo parecia destino. Esta é a minha história. Eu sou a protagonista. Eu sou especial.

Depois disso, o Senhor Tezuka não disse mais nada, mas, provavelmente, foi porque sabia que eu não precisava de ouvir mais nada.

Ao ver o design da coleção e ao entrar em contacto com a história do Pinóquio, compreendi o significado por mim própria. Esta é a história de como, através do poder da magia, uma boneca se torna humana. É uma história sobre realizar sonhos. As roupas que experimentei durante o ensaio me serviram perfeitamente. Como era de se esperar, já que foram feitas especificamente para mim. Elas existem apenas para mim e, considerando o quão casual a coleção Total Girls costuma ser, esse vestido definitivamente se destacará. Mas essa é a visão de mundo da NarraTale.

Não, minha própria visão.

Eu pratiquei bastante andar com o vestido. Senti como as roupas envolviam meu corpo. Como elas balançavam quando eu andava. Memorizei tudo até os mínimos detalhes. Minhas roupas se tornaram parte de mim. Eu podia ouvir as outras modelos ao meu redor conversando e animadas com o desfile, o que parecia afetar negativamente minha psique. Mas, com uma respiração profunda, consegui desviar minha atenção de volta para meu próprio corpo.

O demônio não está mais me possuindo, então nada poderia mais me causar dano... Ioka, concentre-se. As outras pessoas não se importam. 

Pensando nisso, senti uma leve dor no peito, enquanto meu corpo se lembrava do calor daquele dia. Mas isso é passado.

Não importa mais para mim.

Tudo bem, posso me virar mesmo sem meu Jiminy Cricket. Fui escolhida como modelo e estou aqui agora. Neste único e incrivelmente especial First Look.

Tenho que me concentrar mais uma vez…

Basta olhar para mim mesma e tudo ficará bem, no entanto, quando o provador terminou de vestir minha roupa, ele soltou um grito de perplexidade.

— O que... é isso...

Todos os outros funcionários ao meu redor ficaram pálidos.

— D-desculpe! Preciso verificar uma coisa! Por favor, espere aqui, Ioka-san!

— Ei! O que diabos está acontecendo aqui?!

Embora Shimizu fosse sempre do tipo calado e dócil, sua voz agora estava cheia de raiva. Durante todo o processo de vestir o vestido, sempre achei que algo estava errado. Às vezes, a expressão do provador ficava suspeita e, no final, toda a cor havia desaparecido de seu rosto. Eu sabia que as coisas podiam dar errado mesmo durante um desfile como este. Eu havia considerado todas as possibilidades, ou pelo menos era o que eu achava.

— Eu disse para você ter cuidado ao vestir o vestido nela!

— Não, está assim desde o início!

— Desde o início?! Desde quando?! Você está dizendo que isso foi planejado?!

— Não, nós nos certificamos de guardá-lo cuidadosamente após o ensaio final... Isso simplesmente não deveria ser possível!

As vozes ao meu redor de repente ficaram distantes. Meu estilista, Senhor Tezuka, e eu nos reunimos para criar essas roupas. Para contar minha história, a história da marca, e, no entanto, essa história foi destruída. A saia longa que deveria chegar até os meus tornozelos agora mal cobria minhas coxas, o tecido cortado pendurado nas minhas pernas, a parte nas minhas costas arrastando atrás de mim. As roupas na parte inferior do meu pescoço foram rasgadas verticalmente, permitindo uma visão profunda do meu decote. Vários cortes percorriam meu torso, revelando minha barriga. Os sapatos estavam partidos ao meio, o que provavelmente me forçaria a andar descalça.

— Que... diabos...

Eu podia sentir minha consciência se esvaindo. Mesmo a equipe em pânico parecia não ser problema meu.

— Você não tem outro?!

— Claro que não. Este foi feito sob medida para ela!

— Talvez costurar de volta... Não, não temos tempo suficiente!

— Apenas adie o pedido!

— Não podemos. A imprensa já está aqui, pensando que Ioka-san daria a primeira demonstração!

— É melhor do que deixá-la andar por aí com essa aparência!

Com essa aparência…

Esse comentário me levou a verificar minha aparência atual no espelho, então me virei para procurar um. No entanto, por mais que procurasse, não consegui encontrar nenhum. 

Agora entendo…

Eu não deveria ter vindo aqui, afinal, não importa o quanto você se esforce, não há garantia de que os resultados serão os que você deseja. Eu deveria saber disso, mas mesmo assim...

— Desculpe, Ioka-san, mas só podemos pedir que você use isso...

— Eu sei que isso é apenas um acidente… Tudo bem…

Não importa a situação, sou uma profissional que faz o seu trabalho. As roupas não têm culpa. Para me acalmar, entrei nos meus pensamentos, na minha fantasia. Vou subir na passarela. Minhas roupas estão em frangalhos. O público fica em silêncio até começar a ficar mais barulhento. Não acho que vão me xingar. Se fosse o caso, seria depois que tudo acabasse. Quando a mídia divulgasse as fotos. Não sei o que vai acontecer depois disso, Mas serei ridicularizada. Talvez nunca receba uma oferta de trabalho como modelo.

Senti meu corpo esquentar, então fechei os olhos.

Tudo bem. Eu consigo fazer isso.

Não importa o resultado, vou aceitar, porque é por isso que estou aqui. Recebi o sinal quando a música começou a tocar. Eu sabia desde o início que partiria com essa música, When You Wish Upon A Star.

Dei um passo à frente. A passarela com meus pés descalços parecia fria. Para que ninguém percebesse como eu me sentia, coloquei mais força nos dedos dos pés para garantir um andar confiante. Quando pisei no salão maior, as luzes ofuscaram minha visão e o que me recebeu em seguida foram murmúrios perplexos na plateia.

Não. É uma chuva de insultos.

Nem isso, pelo contrário do que eu esperava, eram aplausos ensurdecedores. Eu não entendia o que estava acontecendo.

Por quê? Como vocês podem reagir assim depois de ver minhas roupas? 

Alguém estava chamando meu nome. Me chamando de bonita. Maravilhosa. De tirar o fôlego. Esses aplausos de elogios soavam tão distantes, enquanto as lanternas se moviam violentamente. Eu estava confusa, mas a caminhada que eu havia praticado todas aquelas horas me empurrava para frente como se eu nem estivesse no controle. Chegando ao fim da passarela, mostrei meu melhor sorriso... Pelo menos tentei.

Mas, por acaso, eu vi. Vi o Senhor Tezuka, sentado na frente com todas as outras pessoas envolvidas, sorrindo do fundo do coração.

Levei um momento para perceber que havia parado no meio do caminho. Meu corpo não se movia. Foi porque percebi que todos estavam olhando para o First Look da NarraTale. Não para mim, nem para Rosy, nem para ninguém mais. Não importava o que eu vestisse, nem como eu desfilava, nada disso importava. Meus esforços, meus sentimentos…

Ninguém olha para mim!

O que eu trabalhei e o que sacrifiquei, tudo era sem sentido. Além dessa passarela... há escuridão total.

Eu não posso me tornar especial. Então, por que preciso dessas roupas? Por que todos e tudo não podem simplesmente desaparecer... Espere. O que eu desejei? O que eu queria me tornar? Não consigo me lembrar, Aruha-kun…

E, em um instante, minha pele começou a ferver. O ar ao meu redor tremeu. Todos estavam olhando para mim. Centenas, milhares e ainda mais olhos estavam focados em mim.

A música ficou distante... e então, as chamas cobriram tudo.

*

Ao observar a Ioka, fiquei sem fôlego. Ela era realmente hipnotizante. Olhando para o vestido, parecia que ele havia sido rasgado em alguns lugares. Como se alguém tivesse enlouquecido com uma tesoura, revelando a pele branca de Ioka, mas quando você olhava para toda a silhueta que ela criava, dava para perceber que havia uma intenção por trás de tudo isso.

A música que tocava enquanto ela desfilava era sobre fazer um pedido às estrelas. Isso me lembrou a história de Pinóquio. O boneco inexperiente que não conhece a bondade e a boa vontade passa por muitos fracassos, realiza seu sonho e finalmente se torna humano. Neste exato momento, com Ioka caminhando pela passarela, ela recebeu elogios por seu visual esfarrapado e então, ela se tornará humana.

Pode parecer desconexo e inexplicável à primeira vista, mas essas roupas foram criadas com muito cuidado.

Elas são a história de Ioka.

No entanto, havia algo estranho na garota. Sua expressão ficava mais rígida quanto mais ela se aproximava de nós, seus pés pareciam pesados como chumbo. E, finalmente, ela parou completamente. Naturalmente, o público ficou barulhento e eu percebi algo horrível. O estilista cometeu um erro fatal ao criar essas roupas, pois a garota estava possuída por um demônio.

Descobri no pior momento possível, da pior maneira possível, que o demônio dentro dela ainda não havia sido exorcizado. Porque, no momento seguinte, Ioka explodiu.

Ou, pelo menos, é o que parece.

Minha visão ficou branca, tanto que me causou dor de cabeça. Não eram apenas chamas. Era uma explosão. Um rugido explosivo martelou meus tímpanos. As pesadas luzes ao nosso redor caíram no chão. Todo o equipamento de câmera foi destruído. Em meio à escuridão, alguns lugares começaram a pegar fogo, enquanto a fumaça subia até o teto. Rugidos furiosos, gritos, choro, tremores violentos, o som de passos correndo.

Como um tsunami, os assentos da plateia foram cobertos pelas chamas.

— Cuidado!

Eu me coloquei na frente de Rosy para protegê-la. O calor fazia meu corpo parecer estar pegando fogo. Incapaz de suportar o calor, um gemido escapou dos meus lábios.

— Ugh!

Rosy mostrou o rosto debaixo de mim e gritou.

— Senhor Namorado! Você está bem?!

— Mais ou menos...

— Isso é obra do demônio?! O que está acontecendo com a Ioka?!

— Eu gostaria de saber.

Todo o local estava em choque e pânico. Tudo começou a queimar, enquanto todos tentavam escapar desse terror. Se o fim do mundo fosse nos atingir, provavelmente seria assim. As chamas ainda dançavam na passarela. Por ser tão brilhante, eu não conseguia distinguir a silhueta de Ioka. Apesar disso, ela ainda deveria estar lá, no entanto...

— Ei, o que vamos fazer agora?! Vou morrer aqui?!

A segurança de Rosy vem em primeiro lugar.

— Por aqui!

Puxei sua mão, correndo na direção oposta à entrada. Poucas pessoas usavam a saída de emergência, então a arrastei para fora por ela. Tenho o hábito de confirmar uma rota de fuga onde quer que esteja. Embora fosse mais do que irônico que isso me ajudasse aqui e agora. Chegando ao lado de fora, fomos recebidos por uma multidão de pessoas. Algumas pessoas observavam as chamas de longe, outras recebiam tratamento porque acabaram se machucando, mas, tendo chegado até aqui, Rosy deveria estar segura, pelo menos.

— Rosy! Ainda bem que você conseguiu sair!

Shimizu deve ter ficado procurando por ela o tempo todo, porque ele veio correndo assim que nos viu. Em resposta, Rosy começou a chorar.

— Eu estava com tanto medo! O que está acontecendo?!

— Tudo bem. Estou aqui agora, então você ficará bem. Estamos seguros aqui.

— Mas e Ioka?! Ela estava no meio disso tudo!

— Éééé...

É tudo minha culpa. Eu sou responsável por tudo isso. É claro como o dia o que está acontecendo foi porque o demônio nunca foi totalmente exorcizado. É a realidade que tenho que enfrentar. É o que está acontecendo agora, e essa é a única explicação para esse horror. 

Mas por quê? O desejo dela não foi concedido hoje?

E então, percebi uma coisa. Fui forçado a perceber o erro que cometi. Sai-san disse isso à ela mesma. Todas as condições têm que ser cumpridas. A existência que ela queria apagar sempre esteve lá e então, presumi que, ao queimar tudo em seu caminho, ela queria se tornar a número um. Quando Rosy recuou, Ioka conseguiu o que queria, foi o que pensei.

Mas isso não pode estar certo. Porque se fosse esse o caso…

Quando nos conhecemos naquele telhado. Quando ela estava queimando pela primeira vez que a vi cercada pelas chamas não correspondia a essa condição.

— Vou entrar. Não posso esperar pela ambulância. Rosy, espere aqui — disse Shimizu e tirou o paletó.

Por baixo, pude ver seus músculos peitorais bem definidos e suspensórios pretos acima da camisa.

— Não, deixe-me ir.

— Não posso, rapaz. Você não pode fazer nada.

— Mas eu tenho que ir.

— O que você está dizendo? E se você se machucar? Sua vida está em risco aqui. Deixe isso para os adultos.

— Você não entende. Isso é... Isso é algo que eu tenho que fazer!

Foi tudo o que eu disse e saí correndo. Foi eu quem causei isso.

É por isso que... eu devo ser o único a acabar com tudo isso.

É algo que só eu posso fazer. Tenho algo a dizer à Ioka. E desta vez, vou exorcizar aquele demônio... Porque eu sou o exorcista dela.

*

— Que fedor horrível...

Junto com as chamas, o cheiro de enxofre invadiu meu nariz. Os assentos da plateia haviam se transformado em fumaça. As inúmeras cadeiras alinhadas umas ao lado das outras, assim como a estreita passagem para se caminhar, tudo estava coberto pelas chamas. 

O calor começou a queimar minha pele e a luz ofuscante feriu meus olhos. Eu podia ver chamas alaranjadas por toda parte ao meu redor. Elas se espalhavam até mesmo por coisas que não deveriam queimar, tentando engolir tudo em seu caminho. Os destroços dos equipamentos se empilhavam formando torres. Só de estar nesse espaço, seu corpo poderia pegar fogo. Era como uma cena do próprio inferno e além das chamas, no topo da passarela, estava o trono do inferno, onde ela estava.

— A-Aruha-kun... Por que?

O tom de sua voz... não era mais humano. Era agudo, mas profundo. Translúcido, mas opaco e rouco. Ainda assim, em meio a essa arena de chamas, ele alcançava todos os lugares. Eu sabia instintivamente. Era a voz do diabo.

— N-Não olhe para mim!

Ao mesmo tempo, a aparência de Ioka havia mudado muito. Os restos queimados e negros a seus pés me diziam que seu vestido havia sido completamente consumido pelas chamas. Seus ombros brancos, seios fartos, torso esguio, umbigo redondo, tudo estava à mostra.

Não, nem tudo.

Isso era tudo o que restava de sua aparência humana. Além dos braços, ela estava coberta de escamas, com algo parecido com espinhos crescendo dos cotovelos. Suas unhas cresceram até um comprimento surreal, mudando de forma e se transformando em garras afiadas. Uma longa cauda crescendo de suas costas se estendia pelo chão. Seu cabelo, antes tão bonito, cresceu como ondas e eu podia ver vários chifres crescendo dele. E acima de tudo, suas pupilas verticais, brilhando em um dourado intenso mesmo em meio às chamas, me capturaram como se eu fosse sua presa.

— Aruha-kun! Eu... eu me transformei em um demônio!

Quando ela abriu a boca, vi uma longa língua dividida em duas.

Aquela aparência dela não se parecia em nada com um lagarto ou um T-rex. Ela era como um dragão feroz de fantasia.

Algo assim é possível? Essa é a verdadeira aparência do demônio? Eu estive lutando contra um ser tão desprezível todo esse tempo?

A percepção me atingiu e meu corpo começou a tremer. Minhas pernas me diziam para fugir, mas eu engoli tudo.

— Espere! Eu já estou indo!

Comecei a correr através das chamas, correndo em direção à princesa dragão que estava no centro.

— Wah!

No entanto, como se para me bloquear, uma parede de fogo se ergueu. Com escombros por toda parte, tive que encontrar meu caminho através do labirinto, no entanto, cada vez que encontrava um caminho, uma nova coluna de fogo aparecia, até que, finalmente, gritei para a passarela.

— Grk... Ioka!

Droga! Ela está muito longe. Não consigo alcançá-la assim. Tenho que chegar mais perto…

No entanto, as chamas ficam mais violentas a cada passo que dava. Até meu próprio corpo parecia que iria pegar fogo a qualquer momento.

— Aruha-kun, é tarde demais. Eu queimei tudo!

A cada palavra que ela gritava, chamas saíam de sua boca. Como se correspondesse a isso, explosões soaram ao meu redor, enviando ondas escaldantes em minha direção. Minha garganta começou a queimar, não me permitindo respirar corretamente. Uma dor aguda percorreu todo o meu corpo, mas, mesmo assim, eu tenho que alcançar Ioka. Consegui me manter em pé, apesar dos joelhos trêmulos, enquanto subia nos escombros para alcançar a passarela.

— Desculpe.

Abri a boca, enquanto o ar quente entrava em meus pulmões. Era tudo o que eu podia dizer, mas fiquei feliz por poder dizer isso.

— Aruha-kun... Por que você... por que você está se desculpando? É tudo minha culpa. Olhe para mim! Eu sou um monstro!

— Não. Você não é.

— Sim, eu sou! Eu sempre fui assim. Eu sou... uma garota desagradável. Alguém como eu não pode realizar nenhum sonho. Ninguém se dá ao trabalho de olhar para mim. Então... eu gostaria de nunca ter sonhado. Eu nunca deveria ter querido ser especial! Eu estava errada... desde o início! É por isso que... tudo isso é meu castigo!

— Não diga isso, Ioka!

Dei um passo na passarela, aproximando-me da garota. Ela abaixou a perna, coberta de escamas. Fiquei parado por um momento e me virei para olhar para todos os assentos da plateia. Devia haver milhares de pessoas presentes há menos de uma hora e todos os seus olhares estavam fixos exclusivamente em Ioka, no entanto, ninguém realmente olhava para ela. Ninguém se importava em olhar para a pessoa que usava o vestido, exceto uma pessoa. 

Tomei uma decisão e respirei fundo. O calor, a dor e tudo o que era desagradável percorreu o interior do meu corpo. Mas, mesmo assim, eu precisava dizer a ela.

— Eu deveria ter acreditado mais em você. Essa explicação não cumpriu todas as condições.

— Con-condições?

Ela puxou a perna para trás, enquanto as escamas faziam um barulho estridente.

— Eu havia esquecido da primeira vez que nos encontramos. Ninguém estava ao seu redor, ninguém poderia ter atrapalhado e mesmo assim você queimou. Eu só me aproximei do telhado depois de ver sua luz. Entende? Você não queimou para se livrar de mim e eu te encontrei porque você estava queimando.

— Aruha-kun, o que você está...

Suas pupilas verticais se arregalaram, enquanto ela me olhava confusa.

— Eu não deveria ter pensado apenas nas vezes em que as chamas apareceram. E quanto à condição para elas desaparecerem? Toda vez que as chamas surgiam do seu corpo, ninguém mais olhava para você. Você queria que outra pessoa entendesse como você se sentia. Foi isso que deu origem às chamas e elas sempre desapareciam quando alguém… não, quando eu olhava para quem você realmente é!

— Não... Afaste-se de mim... Aruha-kun...

As chamas tremulavam por toda parte. Suas mãos, pernas, cauda, chifres. No entanto, ela abraçou os ombros para permanecer desesperadamente no controle. O fogo é feito de calor e luz, mas tudo que eu conseguia ver era o calor. A força destrutiva que ele podia trazer. 

Enquanto tremia, enquanto se alastrava, enquanto destruía tudo em seu caminho, mas o que realmente importava era a luz. Não era uma chama que engolia tudo e todos. Não, era uma luz fraca para mostrar onde ela estava, para provar sua existência. Foi por isso que consegui encontrá-la. Como consegui conhecê-la. Assim como um marinheiro que seguia a Estrela Polar para não se perder.

Chamas jorravam de seu corpo. Elas a cercavam como pilares de fogo, cobrindo toda a passarela. Uma parede de fogo impediu meu avanço. Mas aquela fumaça subindo de seus olhos, deviam ser suas lágrimas que se evaporaram instantaneamente. Ela nem mesmo podia chorar, apesar da dor e do sofrimento que experimentava.

— Agora você sabe, certo?

É verdade que ela mesma pode não sofrer queimaduras com o calor, no entanto, as chamas ainda atormentarão o que estava no fundo de seu coração e, então, eu tenho que dizer a ela.

— Diga, Ioka! Qual é o seu desejo?!

Porque este é meu último trabalho.

— Meu desejo é… — as chamas de Ioka correram em minha direção — Eu quero... alguém que olhe para mim!

E então, eu corri. Não para fugir, é claro. Corri direto para as chamas que se aproximavam de mim. Minhas solas começaram a derreter e eu quase caí. As chamas subiram pelo meu corpo, enquanto eu sentia o cheiro de carne queimada.

Uma dor como se meu corpo estivesse sendo rasgado em pedaços assolou todo o meu ser. 

Isso... é o meu castigo.

Eu estava errado. Você sempre gritou por socorro. Você estava tão desesperada por alguém que olhasse para você que isso deu origem a essas chamas e, no entanto, eu só conseguia olhar para o demônio. Dizendo a mim mesmo que eu era algum exorcista, mas agora está tudo bem, Ioka. Mesmo que meu corpo se transforme em cinzas, não importa o quão feia você seja, eu nunca, jamais, desviarei meus olhos de você.

— Iokaaaaa!

— Aruha-kun!

Atravessando as chamas, pulei à frente. Meus braços abertos finalmente puderam alcançá-la. Eu sempre quis fazer isso. Eu deveria ter feito isso muito antes. Eu a abracei apaixonadamente. Finalmente, a pedra perdeu para a atração gravitacional das estrelas e caiu e com isso, a distância entre nós finalmente chegou a zero.

— Eu estava... eu estava sempre sozinha... Se eu não mostrasse nenhum resultado, ninguém se importaria em olhar para mim... Eu achava que isso nunca mudaria, então... eu... eu...

O calor atingiu meu corpo com toda a força. Seus espinhos me perfuraram em vários lugares. A fumaça encheu meus pulmões. Eu mal conseguia respirar, mas, mesmo assim, com minhas últimas forças, sussurrei em seu ouvido.

— Estou olhando. Estou olhando apenas para você. E sempre olharei...

Então, a temperatura escaldante engoliu tudo. Todo o nosso mundo foi coberto por chamas azuis e depois queimado. Mas isso durou apenas um momento, até que tudo desapareceu. Como se fosse algum tipo de truque de mágica.

Isso deve ter sido obra do demônio, então podemos muito bem chamá-lo de “mágica”.

Tudo o que restou foi fumaça e eu, caído no chão. Então lá estava Ioka, tentando desesperadamente me levantar. Quando abri minhas pálpebras pesadas, vi que ela havia voltado ao normal.

Graças a Deus... Então o diabo finalmente foi exorcizado.

— Aruha-kun! Aruha-kun!

Até a voz dela era a mesma que eu conhecia tão bem. Eu podia sentir suas lágrimas caindo em meu rosto.

Estou muito feliz.

Ioka pode chorar novamente sem que as chamas a impeçam. Tentei dizer algo, mas apenas um vazio saiu da minha boca, vindo da minha garganta queimada. Meu corpo inteiro doía incrivelmente.

Ah, entendi... Acho que... vou morrer.

Mas tudo bem. Eu sabia que isso poderia acontecer e estava preparado para isso. Enquanto minha visão ficava branca, eu ainda podia olhar para ela. Ela olhava para mim, chorando violentamente. Enquanto minha consciência começava a vacilar, estendi a mão para ela. Ela a pegou e a puxou para mais perto. Sua mão estava fria como gelo, mas era uma sensação agradável.

Ahh, droga. Mesmo tendo prometido a ela... que sempre cuidaria dela. É por isso que... tenho que superar isso. Se há alguém me observando agora, você poderia realizar meu desejo? Pagarei qualquer preço que você pedir.

Tentei emitir um som com minha garganta, mas só obtive silêncio.

Me salve.

 implorei e implorei, mas nenhum demônio apareceu.

Quando minha consciência estava prestes a se apagar, pelo canto do olho, vi várias pessoas aparecendo. Todas vestiam roupas brancas. Algumas delas começaram a tocar meu corpo e a me mover levemente.

Ah, entendi…

Os anjos vieram me buscar e esse foi o último pensamento que passou pela minha cabeça, mas só descobri depois do ocorrido que aquelas pessoas não eram realmente anjos.

— Afastem-se! Encontramos uma pessoa ferida! Transportando imediatamente!

Eu podia sentir meu corpo sendo levantado. Era como se o céu tivesse me convidado para me juntar a eles.

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