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INTERLÚDIO 1 - 1826 dias ATRÁS


Se eu tivesse que dizer sobre algo do qual eu não gosto, eu teria muitas coisas a dizer. Uma lista quase infinita de coisas que me desagradam desde que lembro ter alguma consciência.

Dentre as coisas que me desagradam, eu poderia citar o mês de Agosto. Um mês extremamente quente em Fujisawa, que muitos gostam de aproveitar na praia. Minha mãe sempre foi uma adepta de ir à Praia de Kugenuma, embora isso pareça um pouco estranho. Ela sempre parece ser mais enérgica em lugares assim e o motivo é sempre o mesmo.

“Eu não posso ficar indo e voltando ao Brasil, então preciso de praia, mesmo que seja em Enoshima.”

Às vezes, eu não sei se é devido somente a saudade do Brasil e suas praias ou se ela apenas deseja exibir seu corpo que aparenta ser mais novo do que a sua idade realmente é.

Espero ao menos herdar essa genética dela…

A segunda coisa que eu mais odiava eram dias chuvosos. Não me entenda mal, eu sei o quão importante as chuvas são e ela até mesmo proporciona a neve, mesmo sendo um evento raro que eu presenciei nesta cidade apenas 3 vezes em minha vida.

Entretanto, dias com chuvas longas são um desafio. Além do típico calor, a chuva intensifica a umidade e trás consigo as rajadas de ventos que inutilizam os guarda-chuvas. Por sorte, a estação de trem não fica muito distante da escola ou de casa, tornando o trajeto um pouco menos incômodo.

Apesar dessas coisas, há uma coisa que começa a me incomodar a cada dia que se passa.

— Haruto, sai desse quarto. Mãe mandou avisar que o banho está pronto. Eu já usei e o Kaito vai usar depois que chegar do treino de beisebol.

Um silêncio imperou por 10 segundos.

— Haruto? Ei, Haruto! Tá me ouvindo?

De repente um som de algo caindo surgiu. Por um momento temi que algo pudesse estar acontecendo com ele, mas sua voz veio logo em seguida.

— Hã? Ah, Bia…

Senti passos se aproximando e eis que o garoto abriu a porta.

— O que disse?

O garoto em questão era Haruto Suzuki, meu meio-irmão mais velho. Ele tinha apenas 3 anos a mais que eu, portanto, não era incomum um tratamento quase igualitário.

O quarto estava claro e possuía diversos cadernos em sua mesa. Isso poderia indicar que ele estava estudando. Ele também utilizava um fone de ouvido com fio, que agora repousava em sua mão.

Então ele estava realmente estudando?

— Eu só disse para não demorar muito pra tomar banho. Quando o Kaito voltar, ele vai basicamente alugar aquele banheiro.

— Pois é… — Haruto falou com um sorriso tímido.

— Era só isso.

Falei isso e logo sai do seu campo de visão.

Nossos quartos ficavam ao lado, então era comum esses tipos de interação que não demandavam se deslocar para lugares que eu não queria.

Haruto era o tipo de pessoa que vivia bastante tempo sozinho em seu quarto. Ele não era do tipo Hikikomori, mas sua insociabilidade às vezes me preocupava. Quando eu o conheci pela primeira vez, eu pensava que ele apenas não gostasse de mim.

Como eu estava enganada…

Na verdade, havia algo que ele amava. Algo mais valioso que as pessoas. Mais valioso que o estudo. Mais valioso que jogos. Mais valioso que status sociais. Havia um prazer do qual ele se deleitava.

Acho que a demora foi pra disfarçar que ele estava estudando, aquele zumbi devorador de livro.

Apenas bufei pela situação ser mais simples do que era e continuei indo em direção ao meu quarto.

Meu quarto não era grande, afinal, ele nunca foi projetado para ser um.

Desde que minha mãe se divorciou de nosso pai, passamos algum tempo morando juntas, no entanto, 2 anos atrás ela conheceu um homem que vinha do Japão durante as férias para conhecer um local que o pai dele havia visitado quando jovem. Na época, ele havia perdido a sua esposa por conta de um câncer colorretal a não muito tempo.

Minha mãe o havia ajudado a encontrar seu filho mais novo, Kaito, que havia se perdido enquanto ele se deliciava com frutas que não havia visto antes. Todo o transtorno, salvo pela minha mãe, gerou uma amizade inicial.

Passaram 1 ano conversando pela internet, mandando emails durante a madrugada devido a diferença de fuso horário. Ambos falavam muito sobre o local em que viviam, mas algo sempre conquistava minha mãe.

— Uau… Eu pensei que o Japão fosse um país que já tivesse 5g ou que todos sabem matemática. Mas praias? Uau! Veja Beatriz, uma foto daquele japonês que te falei com os filhos dele numa praia lá.

— Mãe, nem todo asiático é bom em matemática.

— E não são?

— . . .

Apesar da minha pouca idade, eu já me preocupava com as atitudes joviais da minha mãe. E quando eu digo, quero dizer em um sentido imaturo.

Ainda me preocupando com ela, meus pensamentos foram interrompidos quando ela voltou a falar.

— A próposito, eu tenho que falar contigo. Senta aqui — ela apontou para a cadeira ao seu lado na mesa.

— O que é, mãe?

— Eu andei conversando com ele e juntei um dinheirinho e… mês que vem iremos visitar o Japão.

— Sério?

— Sim.

Quando menos esperava, estávamos no Japão. Um local que uma cultura totalmente diferente e em uma nova família. Minha mãe havia se casado com este homem com quem ela tanto falava, Daisuke Suzuki.

Ele é um homem magro e alto para estatura brasileira, no entanto, seu interesse ia além de minha mãe. Ele sempre me considerava sua própria filha e falava que seria amada igualmente.

Mas ele não é meu pai…

Era o que eu sempre pensava.

Mas ele não é meu irmão… 

Era o que eu sempre pensava.

Eu quero morrer… 

Isto é o que eu estou pensando no momento.

A vergonha de ter demorado para assumí-los como parte da família me envergonha até hoje. Daisuke sempre se esforçou para mostrar que, mesmo não biológico, ele seria um bom pai para mim. Porém, eu sempre o negava.

Essa atitude agora fazia parte do passado e eu havia aceitado muitas coisas. A única coisa que eu ainda não conseguia aceitar era:

Eu odeio quando Hiroshi ler seus livros, nos tratando como seres irrelevantes. Eu, honestamente odeio livros.



1 comentário


Filipe40G
Filipe40G
há 4 dias

Muito bom! Continua por favor.

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